Parceiros apontam ética e coragem como legados de Millôr para o jornalismo
A coragem e a ética foram os principais legados de Millôr Fernandes para o jornalismo brasileiro, disseram hoje (1º) amigos e parceiros do jornalista na primeira mesa do dia na Feira Literária Internacional de Paraty (Flip).
Morto em março de 2012, no Rio de Janeiro, Millôr é o homenageado da Flip deste ano. A feira vai até domingo (3).
O cartunista Claudius, o jornalista Sérgio Augusto e o caricaturista Cássio Loredano lembraram os tempos de redação que compartilharam com Millôr e a genialidade com que ele desafiava os abusos do Estado e as convenções das quais discordava.
“Ele deixa um legado de integridade absoluta, independência, coragem de desafiar os militares, e era de uma honestidade intelectual e profissional excepcional. É um exemplo para todos nós”, disse Claudius.
O cartunista citou duas frases – “Não gosto da direita, porque ela é de direita e não gosto da esquerda porque é de direita” e “Os pássaros voam porque não tem ideologia” – para sustentar que Millôr era, acima de tudo, um libertário. "Não temos nenhuma importância para sermos presos, nem para sermos soltos' foi outra frase lembrada por Claudius, que disse nunca ter conhecido uma pessoa tão destemida quanto Millôr.
Sérgio Augusto ressaltou que a irreverência de Millôr lhe rendeu censura antes mesmo da ditadura militar. “Ele foi censurado no governo Kubitschek, algo raro.” Segundo o jornalista, Millôr comentou uma notícia verdadeira, diante das câmeras da TV Tupi, com close nele, dizendo: “Dona Sarah Kubitschek chegou ontem ao Brasil, depois de seis meses de viagem pela Europa, e foi condecorada com a Ordem do Mérito do Trabalho." O programa foi suspenso, lembrou o jornalista, arrancando risos da plateia.
Outra frase polêmica de Millôr, que custou a apreensão de exemplares do Pasquim (jornal semanal, publicado de 1969 a 1991, que tinha características de contracultura e fazia oposição ao regime militar), foi sobre a ex-primeira-dama dos Estados Unidos Jackeline Kennedy Onassis, fotografada em topless em uma praia: “ela nasceu com a bunda para a lua e aprendeu a usá-la”, escreveu Millôr no Pasquim. A citação da frase sobre a ex-primeira-dama americana fez o público rir ainda mais.
Loredano descreveu um desenho que Millôr fez de uma das equipes de censores que acompanhavam o conteúdo do Pasquim. No desenho, os censores aparecem às gargalhadas lendo um jornal e, em seguida, riscando as páginas com canetas Pilot. "O bicho [Millôr] era muito corajoso. A situação era gravíssima, e não sei como ele não foi preso", disse o caricaturista. “Era realmente intrépido. Foram quase 70 anos em que ele foi um vigilante da gestão da coisa pública, denunciando com coragem”, afirmou Loredano.
“O Millôr desconcertava inclusive seus censores”, destacou o jornalista Hugo Sukman, mediador da mesa.
A genialidade do homenageado também foi muito comentada pelos debatedores. "Não se sabe como esse cara funcionava – a impressão é que ele era Millôr Fernandes full time [o tempo todo], criando coisas, criando coisas. Ele pulava de um assunto ao outro com enorme facilidade, mas, na hora de escrever e desenhar, ficava absolutamente sozinho", lembrou Claudius.
"Ele só vinha à redação para conversar", disse Loredano. "Henfil [cartunista Henrique de Souza Filho, morto em 1988] tinha uma raiva danada quando via o Millôr chegar, porque ele fazia tudo em casa e vinha conversar e atrapalhar o fechamento do jornal", lembrou.
Para Claudius, Millôr Fernandes não teve predecessor, nem sucessor. “Foi absolutamente único, um autodidata. É uma pena que esta homenagem ocorra depois da morte dele. Ele teria curtido muito estar aqui”, concluiu o cartunista.