Parteira, ator e grupos culturais recebem título de Patrimônio Vivo no Recife
A parteira e enfermeira obstetra Maria dos Prazeres, de 79 anos, já trouxe ao mundo 6 mil bebês. Nenhuma criança morreu. Nesta semana, ela subiu ao palco do teatro Santa Isabel para receber o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco. Consagrada pelo saber popular tradicional, que acumulou em 60 anos de profissão em Jaboatão dos Guararapes, foi uma das mais aplaudidas entre os homenageados.
Além dela, mais cinco pessoas e grupos que são representantes da diversidade da cultura do estado foram agraciados com o título. Dois grupos, a Sociedade de Bacamarteiros do Cabo de Santo Agostinho e o Reisado Inhanum, de Santa Maria da Boa Vista, receberam o reconhecimento. Já as titulações individuais foram dadas a Maria dos Prazeres, Mestre Chocho, músico de choro também de Jaboatão; o coreógrafo André Madureira e o ator José Pimentel.
Desde 2005, 51 representantes, entre grupos, mestres e personalidades de referência foram escolhidos pelo Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural (CPPC) para receber a honraria. Além do reconhecimento público, o título de Patrimônio Vivo garante uma mensalidade vitalícia aos agraciados, paga pelo governo estadual. Para pessoas, R$ 1,6 mil, e para grupos, R$ 3,2 mil.
De acordo com a presidente da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), Márcia Souto, também há obrigação dos escolhidos em fazer o repasse do conhecimento que possuem. “Visitando escolas, participando de palestras, cursos, oficinas”, cita. Ela destacou, esse ano, a variedade de áreas dos novos patrimônios vivos. “Nós não tínhamos ainda os bacamarteiros, as parteiras, o resiado representados, então foi muito importante essas escolhas porque mostra a diversidade cultural do nosso estado e a necessidade preservar esses saberes”.
O personagem principal de José Pimentel, ao longo da carreira, foi Jesus Cristo. Por mais de 30 anos ele representou o papel na famosa Paixão de Cristo do município de Brejo da Madre de Deus. Quando o espetáculo mudou de perfil, escalando atores de TV, ele fundou a Paixão no Recife. Dos palcos também vem André Madureira. Seu ofício, no entanto, é a coreografia. Ele é fundador, diretor e coreógrafo do Balé Popular do Recife há mais de 25 anos.
Já Mestre Chocho, cujo nome de registro é Otaviano do Monte, é um dos maiores nomes do choro de Pernambuco. Ano passado fez 70 anos de carreira. Nascido no Cabo de Santo Agostinho, tem 93 anos e ainda compõe canções. Este ano um documentário sobre sua obra e vida foi lançado no Recife: “Chocho – 70 anos de Cordas Musicais”.
Tradição junina
Os grupos de bacamarteiros foram criados com a volta dos voluntários da Guerra do Paraguai, que se misturou à cultura do cangaço (da qual o maior símbolo é Lampião). Uniu-se, assim, a dança com as linhas de tiro dos bacamartes. Como a volta ocorreu em junho, firmou-se a tradição nas festas do período.
O título de Patrimônio Vivo foi dado à Sociedade dos Bacamarteiros do Cabo, o primeiro grupo de bacamarteiros operários, fundado há 51 anos, no Dia do Trabalhador. Eles receberam a homenagem afirmando que representam os mais de 3 mil integrantes da brincadeira espalhados por Pernambuco. Segundo Ivan Marinho, capitão e presidente da sociedade, trabalhadores rurais atraídos pela Destilaria do Cabo de Santo Agostinho, à época, carregaram consigo a cultura e a mantiveram viva. Eles também ajudaram a trazer mais segurança à brincadeira, com a regularização das armas junto ao poder público.
“No âmbito municipal as pessoas estão sempre contratando bandas da cultura de massa, sempre gastando muito dinheiro com uma coisa que vem e passa. Isso nos fortalece para fazer reconhecer a nossa impotância na sociedade”, disse Marinho, destacando a importância do reconhecimento do estado.
Mulher e quilombola
Ana Lúcia Rodrigues de Souza, 39 anos, presidente da associação do Reisado de Inhanum e representante do grupo recebeu a honraria destacando o orgulho de ser quilombola e mulher. Ela chamou ao palco as duas mestras do folguedo, Maria do Socorro e Maria Emília. “Sem querer discriminar os nossos homens, mas falar em nós mulheres progredirmos é algo que deixa a gente muito feliz. Nós mulheres não éramos nada, nem votávamos, e estamos aí nas representações. Uma das características que fez com que a gente conseguisse esse título foi ser composto em maioria por mulheres”, conta Ana.
O reisado de Inhanhum, do município sertanejo de Santa Maria da Boa Vista, tem mais de 200 anos. Surgiu com a catequização dos jesuítas no quilombo, formado da mistura de indígenas e negros. As histórias aprendidas foram transformadas em brincadeiras. Esse folguedo, comum também em outros estados do Nordeste, celebra o Dia de Reis, em 6 de janeiro. Um dos pontos altos é o jogo de espadas, uma dança que simula duelos com a “arma”, que em Inhanhum é feita pelas mulheres. Segundo Ana Lúcia, representa “as mulheres guerreiras do nosso sertão”.
O quilombo já tem a certificação da Fundação Cultural Palmares, mas ainda aguarda a titulação da terra. Ela lembrou uma ação direta de inconstitucionalidade que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) e questiona a regulamentação feita pelo governo federal em 2003 para conceder títulos de terras a remanescentes de quilombos. “Eu tenho certeza que futuramente esse cenário político vai mudar e nós vamos voltar a planejar e fazer tudo o que sonhamos, que é dar a titulação ao nosso povo quilombola”, afirma.
A cultura de fazer nascer
Maria dos Prazeres começou fazendo partos em animais como cadelas e gatas. Aos 17 anos fez o primeiro nascimento humano para ajudar uma mulher que não conseguia chegar à maternidade. O segredo de trazer 6 mil crianças ao mundo sem nenhuma morte, segundo Dona Prazeres, foi a união entre a parte empírica das parteiras tradicionais e o conhecimento científico que adquiriu no curso de obstetrícia.
Atualmente, Dona Prazeres não está realizando partos porque ainda sofre os sintomas da febre chikungunya, que pegou ano passado. Mas, apressa-se a dizer que está “apta”. Sua maior contribuição, no entanto, é a preparação de novas profissionais para realizarem o parto domiciliar. Já formou gente na Paraíba, Rio Grande do Norte, Sergipe e deu cursos em Goiás.
Apesar de já ter trabalhado em diversas maternidades pernambucanas, a homenageada é defensora do parto domiciliar, principal objetivo de sua carreira. “O parto domiciliar, humanizado, deixa a mulher apta para a vida. E os meninos nascidos de parto normal tem outro tipo de saúde”, defende. “Em casa, a mulher é protagonista do corpo dela. Ela fica mais à vontade, com a família”, diz Dona Prazeres.