Grupo de trabalho definirá destino de peças religiosas apreendidas no século 20
Grupos religiosos de matriz africana solicitaram hoje (20), em audiência pública no Rio de Janeiro, a entrega de peças religiosas consideradas sagradas. Os objetos estão sob a posse da Polícia Civil, que confiscou os objetos no início do século 20. Na época, cultos afrobrasileiros eram classificados como crime pelo Código Penal vigente. As peças compõem uma coleção atualmente fechada ao público, denominada Magia Negra, no Museu da Polícia Civil, que está em reforma.
Em audiência na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), os grupos religiosos e o governo do Rio não chegaram a um consenso. A Polícia Civil, órgão do estado, reivindicou o acervo e demonstrou a intenção de exibi-lo no futuro.
Para discutir a questão, foi criado um grupo de trabalho com a participação de lideranças religiosas, polícia, Ministério Público Federal (MPF), parlamentares e outros órgãos públicos. Em até quinze dias, o grupo fará sua primeira reunião, incluindo documentos sobre as condições do acervo de cerca de 200 peças, segundo os religiosos.
Paralelamente, a Comissão de Direitos Humanos da Alerj solicitará ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – que tombou o acervo em 1938 – a mudança imediata do nome da coleção, considerado pejorativo. Para os grupos religiosos, o termo Magia Negra reforça o preconceito contra a umbanda e o candomblé.
Restituição
A responsável pelo terreiro Ilê Omolu Oxum, na Baixada Fluminense, Mãe Meninazinha de Oxum, que desde a década de 1980 defende a restituição das peças, disse que a audiência voltou a tratar de um tema esquecido. Hoje, ela propõe a devolução como segunda opção.
“O certo seria, não vou falar em museu, mas em memorial para esse sagrado. Não se fala em peças para visitação, mas para que as pessoas possam conhecer essa história”, disse a sacerdotisa, de 79 anos, uma das lideranças da campanha Libertem Nosso Sagrado.
Nos cálculos de Mãe Meninazinha, a Polícia Civil tem a guarda de centenas de peças, entre assentamentos (objetos de representação), símbolos dos orixás, instrumentos musicais, além de roupas rituais. Ela chegou a ver as peças uma vez, há mais de uma década.
Com a mediação entre a sociedade e governo do estado, parlamentares pretendem suspender inquérito aberto pelo MPF, pedindo a repatriação dos objetos. Os procuradores argumentam que os crimes que motivaram as apreensões não existem mais, caíram com as leis do Estado Laico, e querem que as peças sejam entregues aos religiosos. Segundo as autoridades, a guarda das peças no Museu da Polícia Civil sem tratamento adequado configura "racismo religioso".
Reparação
Segundo o deputado estadual Flávio Serafini (PSOL), que convocou a audiência, o grupo de trabalho continuará a discussão sobre a reparação do que considera um "erro histórico" e, caso não se chegue a uma conclusão, o MPF voltará a ser acionado para dar andamento à ação judicial.
“As religiões poderão amadurecer a proposta da Secretaria de Cultura, de intermediar a relação, recebendo as peças por um tempo e formatar uma proposta para o futuro”, afirmou.
A Polícia Civil, que reivindica o acervo como parte da história da corporação, lamentou não ter condições de exibi-la agora, por problemas de infraestrutura. O diretor do Museu da Polícia Civil, Cyro Advínculo defendeu a manutenção das peças onde estão.
“Um museu não apreende suas peças, um museu preserva, pesquisa e expõe”, disse, na audiência. “Todos os museus constituem seus acervos com os objetos mais variados, que pertenceram a outras pessoas, grupos ou nações, e que, por circunstancias históricos, foram abrigados nesses espaços”,
O representante da chefia de Polícia Civil, Gilbert Stivanello, disse que a instituição terá “enorme felicidade” em abrir o acervo à população, quando possível. A intenção é evidenciar a mudança de atuação da polícia ao longo dos anos.
“Queremos mostrar o que o tempo faz, que a polícia que cooperou para a intolerância religiosa está sendo substituída por outra, que quer firmemente combater a intolerância para que o passado de erros não se repita.”
Já o secretário estadual de Cultura, André Lazzaroni, está de acordo com a devolução, identificação e exibição do acervo em outras condições. Ele comparou a guarda das peças pela polícia com o confisco de obras de artes por nazistas. “Se entendermos que o Estado é o verdadeiro dono desse acervo, concordaremos que a Alemanha e a Áustria são donas do acervo roubado dos judeus”.
*Com Raquel Júnia, repórter do Radiojornalismo