Após 10 anos, famílias de vítimas dos Crimes de Maio aguardam punições
Era 15 de maio de 2006, um dia após a celebração do Dia das Mães e um dia antes de dar à luz a filha Bianca, a jovem Ana Paula, de 20 anos, foi assassinada junto com o marido, em Santos, no litoral paulista.
“Ela sentiu vontade de tomar uma vitamina de fruta e não tinha nem leite em casa. Eles [ela e o marido] foram até uma padaria, próxima da minha casa, aberta 24 horas. Eles foram e não voltaram mais. Morreram ela, a Bianca e o marido [Eddie Joey de Oliveira]”, conta a manicure e cabeleireira Vera Lúcia dos Santos, 60 anos, mãe de Ana Paula.
Ana Paula e Eddie Joey estão entre as vítimas dos Crimes de Maio, quando 564 pessoas foram mortas e 110 ficaram feridas no estado de São Paulo de 12 a 21 de maio de 2006. Os assassinos do casal até hoje não foram processados ou punidos. “Foram policiais do bairro. Conheço todos eles. Eles não foram punidos e nem irão. Já são dez anos. O processo dela foi arquivado antes de sete meses”, disse Vera Lúcia em entrevista à Agência Brasil.
Passados dez anos, apenas dois policiais militares foram condenados. Alexandre André Pereira da Silva foi condenado em julho de 2014 a 36 anos de reclusão pelas mortes de Murilo de Moraes Ferreira, Felipe Vasti Santos de Oliveira e Marcelo Heyd Meres, no Jardim Brasil, zona norte da capital paulista. O outro é o policial Ronivaldo dos Santos Ribeiro, que confessou o crime e foi condenado em 2011 a seis anos de reclusão pela morte de Alex Trindade Secco, no dia 18 de maio de 2006, ferido por disparos de arma de fogo, no Bairro Jardim dos Francos, zona norte da capital. Ambos respondem em liberdade.
“Vimos um julgamento como aquele, em que um policial foi condenado a 36 anos de cadeia, sair dali solto e intimidando todo mundo. Foi muito doído para nós vermos o policial ser condenado e depois ser libertado. Se um cidadão comum cometer um crime contra a vida, não há como ele responder [ao processo] solto. Ele responde dentro da cadeia. Para mim foi muito difícil”, disse Débora Maria da Silva, que perdeu o filho durante os ataques e ajudou a fundar o movimento Mães de Maio, que reúne mães e parentes das vítimas daquele maio de 2006.
Indenizações
Além da ausência de julgamentos dos responsáveis pelos crimes, as famílias das vítimas também aguardam por indenizações. Nos últimos anos, o defensor público do Núcleo Especializado de Direitos Humanos, Antonio José Maffezoli Leite, de São Vicente, ingressou com oito ações indenizatórias contra o governo paulista pelas mortes. Todas foram negadas na primeira instância. “No recurso em que a gente entrou [na segunda instância], ganhamos dois. Mas esses dois são duas vitórias que estão sendo recorridas pelo estado”, disse o defensor à Agência Brasil.
As duas ações a que o defensor público se refere tratam das mortes do gari Edson Rogério Silva dos Santos, 29 anos, e de Mateus Andrade de Freitas, 22 anos.
Edson Rogério Silva dos Santos foi morto no dia 15 de maio de 2006, na Baixada Santista, quando tentava abastecer a moto em um posto de gasolina. A mãe dele é Débora Maria da Silva, uma das fundadoras da associação que reúne mães e parentes das vítimas. Já Mateus Andrade de Freitas foi morto no dia 17 de maio de 2006, junto com Ricardo Porto Noronha, de 16 anos. Ambos cursavam o terceiro ano do ensino médio no período noturno. Naquele dia, eles tinham ido até a escola, mas devido a um toque de recolher na região, a escola dispensou os alunos. Na volta para casa, foram mortos com três tiros na cabeça cada um, por homens encapuzados em motos.
Segundo Maffezoli, a dificuldade das famílias em conseguir indenizações está relacionada a “tradição conservadora” do Poder Judiciário em reconhecer a responsabilidade do Estado nas mortes, como, por exemplo, não ter garantido segurança a população. Para o defensor, existem fortes indícios da participação de policiais em várias mortes e falha na investigação dos homicídios.
“A gente tentou mostrar que o Estado era responsável por isso e tinha que indenizar pelo dano moral sofrido, pelo sofrimento das famílias. Mas o Judiciário, tanto na primeira instância quanto na segunda, na maioria das ações, tem um enfoque muito padrão em relação às responsabilidades do Estado, [dizendo] que tem que ter uma culpa direta do funcionário público, que você tem que provar isso. Isso é uma dificuldade histórica. Não só com os Crimes de Maio, são situações que acontecem normalmente. E tem a questão também de você estar tratando com gente pobre. Casos de indenização no Judiciário de São Paulo, quando envolvem médicos ou juízes, as indenizações são concedidas e são altíssimas. Mas estamos tratando de pessoas pobres, moradoras da periferia”, disse.
Um relatório da Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, apontou que quase todos os inquéritos policiais sobre as mortes de civis nos Crimes de Maio foram arquivados pelo Poder Judiciário a pedido do Ministério Público. Já as mortes de agentes públicos (como policiais) foram esclarecidas, o que, segundo o relatório, demonstra “uma investigação seletiva”. Na esfera civil, a maioria das ações propostas foram julgadas improcedentes em primeira instância, muitas agora estão em fase recursal.
Uma pesquisa feita pela reportagem da Agência Brasil identificou que, em novembro de 2006, o então governador de São Paulo, Cláudio Lembo, promulgou leis que autorizavam a Fazenda estadual a pagar indenizações aos agentes de segurança mortos nos ataques de maio de 2006 em horário de folga, o que não estava previsto em lei.
A Lei 12.403, por exemplo, autorizava o pagamento de indenização, no valor de R$100 mil, às famílias de 11 policiais civis mortos fora do horário de serviço em maio de 2006. Lembo também assinou a Lei 12.401 sobre pagamento de indenização, também de R$ 100 mil, aos parentes de 16 policiais militares, mortos fora do horário de serviço, entre os meses de maio e julho de 2006.
“O que mostramos, sem mesmo [o pagamento da] indenização, é que a polícia não age desamparada de um poder político atrás dela, que sustenta suas ações. De um poder político que está vinculado não apenas ao apoio, mas à conivência do Executivo, do Judiciário e de outras instituições, como do Ministério Público. Acho que quando a polícia cometeu esses crimes, a mensagem que é velada, mas está muito presente em tudo isso, é que a polícia faz aquilo que se espera o que ela faça. E aí não faz sentido punir. Se de fato o Estado entendesse que não deveria agir dessa forma, esses policiais não seriam promovidos, chegando muitas vezes a altos postos da corporação”, avalia Camila Nunes Dias, socióloga, professora da Universidade Federal do ABC, pesquisadora e colaboradora do NEV (Núcleo de Estudos de Violência da USP) e autora do livro PCC - Hegemonia Nas Prisões e Monopólio da Violência.
Procurada pela Agência Brasil, a Procuradoria-Geral do Estado não soube informar o número de indenizações que foram pagas a famílias de civis mortos nos Crimes de Maio. “Foram pouquíssimos casos em que houve condenação e em todos eles houve interposição de recurso”, informou o órgão.
Quanto às indenizações pagas aos parentes de policiais, a Secretaria de Administração Penitenciária informou, em nota, que 15 servidores morreram em decorrência do exercício da função em maio de 2006 e as famílias de todos receberam indenizações. Já a Secretaria de Segurança Pública não forneceu a informação.
Federalização
Em busca de punição para os crimes, o movimento Mães de Maio apresentou, em 2010, à Procuradoria-Geral da República que os casos fossem julgados pela Justiça Federal e não pela Justiça de São Paulo, a chamada federalização. Nesta semana, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, aceitou o argumento do movimento e pediu a federalização de cinco homicídios ocorridos no dia 14 de maio de 2006, no Parque Bristol, na capital paulista. O pedido de Janot foi encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
“São 3.650 dias sem dormir porque o Estado não deixa a favela dormir. O [movimento] Mães de Maio não vai ficar nesse inconformismo”, disse Débora Maria da Silva, fundadora do movimento.
Para Renata Neder, assessora de Direitos Humanos da Anistia Internacional no Brasil, a federalização mostra que o sistema paulista de Justiça foi incapaz de dar uma resposta para esses crimes. “O que se observou com relação a maio de 2006 é que o sistema de justiça do estado [de São Paulo] foi absolutamente incapaz de responder a essa grave violação. Esses graves crimes que aconteceram justamente porque não foram investigados ou responsabilizados”, disse à Agência Brasil, criticando a demora de seis anos na resposta da PGR.
Na opinião do defensor público Antonio José Maffezoli Leite, o pedido de federalização pode evitar “o compadrio” na esfera estadual. “Pressupomos que, se tirando da competência estadual, afaste-se a questão do compadrio que há entre agentes locais, delegados, promotores e comerciantes em uma cidade menor, em que as pessoas se conhecem. Você tira um pouco essa proximidade”, disse, admitindo que poucos casos no país foram federalizados.
O procurador de Justiça Criminal Márcio Sérgio Christino, membro do Conselho Superior do Ministério Público, o pedido de federalização não deve ter efeito no caso dos Crimes de Maio. “Não vejo hipótese legal de federalização”, disse ele.
OEA
Em abril do ano passado, a Defensoria Pública e o movimento Mães de Maio também denunciaram o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) em que pedem o reconhecimento das violações e que a comissão determine a reparação integral às famílias.
“Em 2015, data em que fizemos a denúncia internacional, passaram-se nove anos e o Estado não investigou os crimes, não puniu os culpados e não indenizou as vítimas. [pedimos] que a comissão determine que o Estado faça isso. E há vários precedentes de massacres e normalmente a Corte já fixa um valor de indenização, mas também determina ao Estado que proceda com as investigações. Pedimos na denúncia a reorganização da polícia e do Ministério Público e da possibilidade de ter recurso contra o arquivamento [dos casos]”, disse o defensor Antonio José Maffezoli Leite.
Para a fundadora do movimento, Débora Maria da Silva, a OEA irá condenar o Brasil pelas violações. “Mesmo que o país não acatar, a OEA vai cobrar”.