Mudanças climáticas comprometem modo de vida de povos indígenas
Os pássaros não sobrevoam mais a floresta, os peixes já não sobem porque o rio não enche, o fogo se alastra muito rápido pela mata, a mandioca morre por falta de chuva, as árvores que dão material para a construção de casas e para o artesanato não têm força para crescer. Hoje (19), data em que é lembrado o Dia do Índio, um dos desafios das populações indígenas é o enfrentamento desses problemas, consequências das mudanças climáticas.
Apesar de parecerem de simples solução para quem vive na cidade, para os povos das florestas, cada uma dessas mudanças é extremamente simbólica, como explicou o especialista do Instituto Socioambiental (ISA), Paulo Junqueira. Segundo ele, além de depender diretamente de um funcionamento equilibrado do meio ambiente, os índios têm nos sinais da natureza indicadores para diversos acontecimentos.
“Uma determinada formação de nuvens com trovoadas é sinal de chuva, e um deles me relatou que hoje tem a trovoada, tem a nuvem, mas não chove, ou o contrário, a chuva vem antes dos indicadores que eles conheciam. Há vários desses indicadores que estão deixando de funcionar. É como se, de repente, todos os nossos relógios ficassem malucos e a gente se perdesse no tempo”, explicou.
Junqueira é coordenador adjunto do Programa Xingu, responsável pelas ações do ISA no Parque Indígena do Xingu, no norte de Mato Grosso. O ISA, em parceria com o Instituto Catitu, produziram o curta-metragem Para Onde Foram as Andorinhas, exibido durante a Conferência do Clima de Paris (COP-21) em 2015, e que conta como os povos do Xingu estão percebendo e sentindo em seu dia a dia os impactos das mudanças do clima.
Abaixo, o vídeo “Vozes Indígenas num Clima em Mudança”, produzido pelo Instituto Sociedade, População e Natureza, com depoimentos tomados, principalmente, durante encontros e reuniões que antecederam a realização da 21ª Conferencia do Clima (COP 21), ocorrida em Paris em dezembro de 2015.
O parque está localizado na fronteira agrícola e, segundo Junqueira, mais da metade das florestas do entorno foram suprimidas. Dentro do parque, entretanto, que tem uma área de 2,8 milhões de hectares, o desmatamento não passa de 1%, contabilizando as aldeias, estradas e roças.
A questão mais grave no Xingu é o fogo. Segundo o coordenador do ISA, os índios têm vários usos para o fogo e têm domínio dessa técnica para o manejo nas plantações. Entretanto, por causa do desmatamento no entorno e das mudanças do clima, a floresta está mais seca, os índios têm menos espaço para mobilidade e o fogo está avançando cada vez mais. A estimativa é que no ano passado, mais de 10% do parque tenham sido atingidos pelo fogo.
“Os índios pararem de usar o fogo não é uma alternativa, isso significa ter que mecanizar muito o trabalho e é até ecologicamente contraindicado, têm ambientes que já estão acostumados com os usos que eles fazem do fogo, ele faz parte da ecologia do parque”, destacou Junqueira.
Além do fogo, há prejuízos em seus sistemas de orientação do tempo, rituais, sua cultura material e base alimentar. A principal fonte de alimentos no Xingu são as roças, a caça e a pesca. O especialista conta que eles tiveram várias perdas de roça por falta de chuvas, no ano passado, principalmente mandioca; e fora do parque, os fazendeiros também perderam plantações de milho e soja. Junqueira contou ainda que há fontes sazonais de proteínas, como os peixes que sobem o rio em diferentes épocas. Como alguns rios estão secando, há o impacto na aquisição de proteínas.
“Tanto do ponto de vista da alimentação quanto da manutenção cultural, eles estão vendo vários recursos ficarem escassos”, disse Junqueira.
Mobilização indígena
Em Roraima, o problema é semelhante. A coordenadora do Departamento de Gestão Territorial e Ambiental do Conselho Indígena de Roraima, Sineia do Vale, contou que há um estudo com os povos da Serra da Lua, no sul estado, que demonstra que eles já têm percebido alterações por causa das mudanças climáticas. “Isso tem afetado na vida social, na pesca, na agricultura, na própria vida da comunidade, nos saberes tradicionais. Eles relataram que estão sentindo muitas dessas mudanças”, disse Sineia, que é do povo indígena Wapichana.
Ela conta, por exemplo, que os estoques de alimentação estão prejudicados porque já não há um tempo de plantar na região, o clima e as chuvas estão descoordenados, e as sementes tradicionais não respondem da mesma forma. A questão da falta de água também é um grande problema para Sineia. “Eu dou exemplo de Roraima, mas nós viajamos pelas outras regiões do Brasil e vemos que todos sofrem com esse problema da seca. Há lugares que não ouvíamos falar de falta de água e, com essas mudanças, as pessoas já dizem que falta para o consumo, plantação ou para os animais beberem.”
Sineia é gestora ambiental e representa a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) dentro do Comitê Indígena de Mudanças Climáticas. Ela conta que os grupos atuam em várias instâncias de governo e da sociedade, em nível nacional e internacional, para defender as questões indígenas e para que o Estado possa ter um plano voltado para a realidade. “O povo indígena desde sempre conservaram essas áreas e agora são afetados por essas mudanças. Precisamos ter um olhar especial para fortalecer e dar suporte a esse povo.”
Adaptação às mudanças
Para a wapichana, as comunidades tradicionais têm que se preparar para a adaptação porque as mudanças climáticas já são uma realidade. E os governantes precisam olhar para o povo que está na floresta porque eles detêm o conhecimento para a manutenção da biodiversidade, das florestas e das águas.
Segundo Sineia, o Brasil avançou um pouco em algumas discussões, mas vem implementando o Acordo de Paris de forma lenta. Ela vê no Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, do Ministério do Meio Ambiente, um instrumento para reduzir a vulnerabilidade às mudanças climáticas, mas que é preciso fazer um planejamento regionalizado.
“Ainda está tudo no plano da discussão. Foi uma luta para colocar um subcapítulo sobre povos indígenas”, disse. “As regiões têm suas especificidades, então não podemos fazer um planejamento geral”, argumentou.
Estão no Parque Indígena do Xingu 16 povos, mais de 80 aldeias, que reúnem 13 línguas diferentes com hábitos distintos e peculiaridades nos usos da floresta.
Para fins de planejar a implantação e o financiamento das ações e medidas da Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do Brasil no Acordo de Paris, o Ministério do Meio Ambiente está articulando a elaboração de uma estratégia nacional de implementação e financiamento da NDC. O documento-base dessa estratégia está em consulta pública até o dia 30 de junho, no site do ministério.
Políticas públicas
Cortes de orçamento, pressões para abrandar a fiscalização e flexibilização da legislação são alguns dos problemas que o Brasil está passando na questão ambiental, segundo Paulo Junqueira. “É uma pena que a bancada ruralista tenha dominado tanto”, disse ele sobre as demarcações de terras indígenas.
Ele contou que os grandes problemas de saúde do Xingu estão relacionados à alimentação. “Todas as aldeias têm problema de hipertensão, diabetes e obesidade por conta da substituição da alimentação deles pela nossa. Então, essa assistência através de dinheiro, comida, é muito prejudicial, os índios precisam de terra”, explicou.
Para a gestora ambiental Sineia do Vale, o Brasil está vivendo um retrocesso dos direitos indígenas. “Quando a gente vê toda essa mudança na Funai, todo esse desmonte, isso enfraquece um trabalho que vinha sendo feito com os povos indígenas”, disse. “Principalmente as demarcações, já temos isso cientificamente provado, que as terras indígenas elas conservam tanto quanto as unidades de conservação. Sem terra não tem vida e a gente precisa continuar dando manutenção nas terras indígenas”, ressaltou.
Na próxima semana, de 24 a 28 de abril, cerca de 1,5 mil lideranças indígenas devem se reunir em Brasília no Acampamento Terra Livre. A mobilização indígena visa a discutir e se posicionar sobre a violação dos direitos constitucionais e originários dos povos indígenas.
Funai
O Decreto 9.010, de março deste ano, extinguiu 87 cargos, entre elas 51 coordenações técnicas locais. Em nota, a Funai informou que o presidente da instituição, Antônio Costa, “trabalhará para que o impacto da medida não desqualifique o trabalho que vem sendo desenvolvido em prol das comunidades indígenas do país”.
Segundo a Funai, Costa conseguiu, junto ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, converter funções de servidores da sede em cargos comissionados, a abertura do concurso de remoção, a garantia da nomeação de 220 concursados e o remanejamento de coordenações técnicas locais impactadas com o decreto.
A fundação informou ainda que os processos de regularização fundiária que se encontram na Funai estão em andamento e podem ser acompanhados pelo site da Funai.