Roteiro a pé resgata memória LGBTQIA+ no centro do Rio
O Rio de Janeiro é citado com frequência nas listas internacionais de melhores destinos de viagem para a população LGBTQIA+, e, em especial, para os gays. Mas, a memória da resistência dos cariocas por direitos iguais e para exercer identidades de gênero e orientações sexuais dissidentes do padrão dificilmente faz parte desses roteiros. Para resgatar essa história, o projeto Rolé vai realizar neste sábado (24) o Rolé Colorido, que passa por locais onde a população LGBTQIA+ do Rio de Janeiro encontrou espaço para viver a diversidade desde o século 19.
A visita guiada ocorre a partir das 10h, com início na Praça Tiradentes, e o percurso proposto pelo estúdio M’Baraká e pelo escritor e roteirista Guilherme Macedo permanece como convite a conhecer um outro lado do centro da antiga capital do Império e da República.
Macedo é um dos responsáveis pela programação, com base em um trabalho de pesquisa que começou como projeto de podcast e roteiro de série, mas vai ganhar as ruas como uma visita de fato. A percepção de que era preciso traçar esse percurso começou na pandemia de covid-19, ao lado da antropóloga Paola Lins.
“No isolamento, percebemos que, com tudo fechado, não tinha nada LGBT na rua, a cidade ficou hétero de repente. Uma cidade tão colorida como o Rio de Janeiro ficou cinza. E a gente ficou refletindo sobre esse apagamento, em que vários lugares que existem e que são lugares por onde já passaram tantas figuras LGBT importantes não são reconhecidos.”
Com a proposta do Rolé Colorido, o roteirista espera que as pessoas se interessem mais, procurem mais e se sintam pertencentes a esses espaços. “O que a gente está fazendo agora se comunica com uma ideia de ancestralidade, de fazer um tributo a quem veio antes da gente e abriu esse espaço para a gente. E é para saber que a gente pode dar seguimento a esse trabalho”, conta.
Praça Tiradentes
A ideia de começar a visita pela Praça Tiradentes não é sem propósito, explica ele. Desde o século 19, a praça é um espaço de socialização da população LGBTQIA+ na noite do centro do Rio. Essa é uma história que, de diferentes formas, se repetiu ao longo do século 20 e também no século 21.
“No século 19, você tinha registros policiais que apontavam uma movimentação suspeita na praça depois das 20h, e dizia que as pessoas que circulavam por lá eram os frescos, como chamavam os homossexuais passivos, e, junto com eles, os fanchonos, que eram chamados os ativos na época. Isso tudo em registros policiais", relata. “É uma história muito anterior a Stonewall, com as reações e violências acontecendo também. Se a gente tivesse sido vencido na primeira violência, a gente não estaria onde a gente está. Houve muita resistência. Por mais que não fosse criminalizada, a homossexualidade era patologizada e enquadrada como crime de atentado ao pudor. Você era preso, nas brechas da lei, por ser gay, travesti e sapatão. Essas pessoas estão na luta desde o século 19".
Ao redor da Praça Tiradentes, estão diferentes pontos e camadas temporais dessa história. O terreno que hoje é ocupado pelo edifício do Hotel Ibis já foi a Casa de Caboclo, onde Madame Satã surgiu nos palcos pela primeira vez como travesti, e também o Hotel São José, onde acontecia a Gayfieira - uma gafieira gay - na década de 1970, em plena ditadura militar. Na década de 1940, durante o Estado Novo, o Teatro João Caetano, também ao redor da praça, recebeu o Baile dos Enxutos, evento carnavalesco para gays e travestis.
Macedo destaca que essa história chegou ao século 21. Em 2015, lésbicas realizaram o Isoporzinho das Sapatão para reivindicar visibilidade, e os arredores da praça abrigaram até recentemente casas de shows e boates voltadas ao público LGBTQIA+, como o Cine Ideal e o Espaço Acústica.
“É um percurso de passado e de presente. De coisas que continuam acontecendo”, define o roteirista, que também é um homem gay do Rio de Janeiro. “Com essa pesquisa, eu me sinto muito mais orgulhoso, muito mais pertencente ao mundo, a esses espaços que estão ali há mais tempo do que a gente imaginava. Sinto orgulho de estar em um lugar que é tão icônico, porque quando você conhece a história, você cria um sentimento de reverência e, ao mesmo tempo, de pertencimento, que é algo importante para a comunidade”.
Rua da Carioca
O percurso da visita segue para a tradicional Rua da Carioca, famosa por seus sobrados e lojas de instrumentos musicais. A primeira parada é o Cine Íris. Dedicado a pornochanchadas e arte erótica e pornográfica desde a década de 1970, tem seu público principalmente formado por homens gays, com uma programação que já incluiu shows de strip-tease, inclusive de mulheres trans.
A segunda parada é o Grupo Arco-Íris, uma das mais antigas entidades LGBTQIA+ da cidade. Criada em 1993 para promover o bem estar e os direitos da população LGBTQIA+ e soropositiva, o grupo organiza desde 1995 a Parada LGBTQIA+ de Copacabana, a maior da cidade.
Lapa
Vizinho à Praça Tiradentes, o bairro da Lapa, na região central do Rio, é considerado uma continuidade dessa efervescência pelo roteirista. Na Lapa, estão ainda hoje bares e casas de show que abraçam a diversidade, e Macedo explica porque é tão importante incluir espaços de festa na memória da resistência LGBTQIA+.
“A gente reforça o fato de que é necessário um espaço de socialização e afeto. É uma população que sofria violências o tempo todo. E como você vai exercer o seu desejo e a sua identidade dessa forma? O espaço de afeto e socialização era fora de casa. Todo mundo socializa através do desejo e, se você não pode exercitar o seu desejo dentro da sua casa, você vai exercitar fora. As pessoas tentam fazer com o que elas têm”.
A primeira parada na Lapa é o clube Turma Ok, fundado em 1961. Ele é considerado o mais antigo clube que reúne LGBTQIA+ do Brasil que continua em atividade. A casa promove reuniões entre os sócios, recebe convidados e apoiadores para almoços, noites de bingo e espetáculos de variedades, como shows de gogoboys e transformistas.
A presença histórica das travestis na Lapa é reverenciada com uma passagem pelo Casarão de Luana Muniz, onde viveu a travesti que abrigou e orientou outras mulheres trans que dependiam da prostituição para sobreviver. Luana ficou nacionalmente famosa, quando, ao ser registrada pelo programa Profissão Repórter, da TV Globo, proferiu a frase “travesti não é bagunça”, que se tornou um grito de resistência da população trans.
Dois cabarés também fazem parte da programação na Lapa. Ainda em atividade, o Cabaré da Jacke, uma travesti empreendedora, promove festas e shows e emprega outras travestis no local que já foi a boate Sinônimo, outro famoso ponto de encontro da população LGBTQIA+. Já no Cabaré Casanova, que não funciona mais, ícones como Laura de Vison, Meime dos Brilhos e Madame Satã fizeram história com suas apresentações.
Cinelândia
A parte final do trajeto é na Cinelândia, onde o percurso encontra a luta de Marielle Franco para aprovar o Dia da Visibilidade Lésbica. Um ano antes de seu assassinato, a vereadora mobilizou uma agenda de lutas coletivas com o projeto de lei, que foi rejeitado em 2017. Em resposta, o movimento de lésbicas realizou uma ocupação nas escadarias da Câmara dos Vereadores, o Ocupa Sapatão. A luta pelo dia de visibilidade continuou até que a lei fosse aprovada, em 2022.
Assim como o Cine Íris, o Cine Rex se tornou ponto de encontro entre homens homossexuais e bissexuais no século 20 pela exibição de filmes pornográficos em um espaço com privacidade. Ao seu lado, a programação termina no Teatro Rival, espaço que marcou época com apresentações de travestis pioneiras da cidade, como Rogéria, Marquesa, Brigitte de Búzios, Jane Di Castro, Divina Valéria, Eloína dos Leopardos, Camille K e Fujika de Halliday. Ainda hoje, a arte LGBTQIA+ se faz presente na programação, e o Rivalzinho, bar ao lado, é ponto de festas considerado amigável para a comunidade.
“É importante que a população tenha não só uma plaquinha nesses lugares, mas que haja mais rolés assim. A ideia é não parar no centro, é percorrer o Rio de Janeiro inteiro. Porque o Rio de Janeiro inteiro e o Brasil inteiro têm vestígios, registros e memória LGBT”, define Guilherme Macedo.