Iniciativas isoladas garantem ensino da história e cultura da África
“Quem destrói o caráter do outro, destrói o seu próprio.” É com provérbios africanos como esse que o pedagogo Marcos Reis, 43 anos, costuma abrir suas aulas diariamente.
“Eu já começo a aula com uma frase do dia que mostra que temos que viver como irmãos e superar todas as desigualdades e preconceitos. E isso acontece durante todo o ano”, explicou Reis que leciona para turmas de 4º e 5º ano do ensino fundamental em uma escola da Ceilândia, periferia do Distrito Federal.
Nascido em Brasília, Marcos está em sala de aula há 23 anos e, nesse período, se tornou referência no desenvolvimento de projetos de combate ao preconceito racial e à promoção da diversidade étnica na escola. Pelo trabalho desenvolvido, Marcos foi agraciado com o Prêmio Educar para a Igualdade Racial, organizado pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert).
Ao contrário de outras práticas escolares que focam apenas em datas oficiais como o Dia da Abolição da Escravatura, em 13 de maio, ou o Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, Marcos tenta refletir com as crianças todos os dias sobre a história africana e indígena, além de orientar sobre formas de combate ao bullying e ao racismo por meio de diferentes atividades em sala de aula, como a elaboração de biografias de personalidades negras.
Obrigação legal
O trabalho do professor é uma das muitas iniciativas isoladas de aplicação da Lei 10.639, que obriga as escolas a incluírem no currículo o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira. Editada há 15 anos, a lei ainda não é implementada de forma ampla e real pelos estados e municípios.
“O Brasil percebeu que há uma tremenda omissão das escolas públicas e particulares no estudo da história do negro e da África, apesar de uma ênfase na história europeia”, comentou frei David Santos, diretor da Educafro, organização que trabalha pela inclusão de negros e pobres em universidades por meio de bolsas de estudo.
Na avaliação do especialista, a lei se mantém como um desafio para que prefeitos, governadores e governo federal implementem o ensino da África com mais qualidade, responsabilidade e compromisso.
Infância marcada pelo racismo
Marcos Reis conta que, além de seguir a obrigatoriedade da legislação, sua motivação para levar adiante a iniciativa de ensino da história afro-brasileira vem das experiências dolorosas que viveu na infância e de seu envolvimento com o movimento negro.
“No meu primeiro dia de escola, um colega se recusou a sentar porque eu estava lá e disse 'enquanto esse preto, esse macaco, estiver aqui eu não entro'”, relatou.
O professor compartilha o episódio de racismo e formas de prevenção a casos como o que viveu em palestras e discussões em grupos do movimento social. Ele também já publicou o livro infantil Lápis Cor de Pele – que trata da importância de se falar da diversidade racial entre crianças.
Educação para relações étnico-raciais
A Lei 10.639/03 é um desdobramento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, editada em 1996. No artigo 26-A, a lei prevê que os estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e privados, devem obrigatoriamente oferecer o ensino da história e cultura afro-brasileira no âmbito de todo o currículo escolar, principalmente nas áreas de educação artística, literatura e história.
De acordo com a lei, o conteúdo programático das escolas deve incluir aspectos que caracterizam a formação da população brasileira, destacam a história da África, a luta dos negros e dos indígenas no Brasil e a contribuição desses povos na formação da sociedade e nas áreas social, econômica e política do país. O tema pode ser tratado de forma transversal por diferentes disciplinas.
Além de reforçar a obrigatoriedade do ensino da cultura e história afro-brasileira nas escolas lançadas nas diretrizes de 96, a Lei 10.639 prevê ainda a inclusão da data 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, no calendário escolar. Em 2008, ela foi atualizada com a inclusão da temática indígena e cigana.
“Essa lei vem do movimento social, vem de uma construção histórica de várias décadas até que é assinada em janeiro de 2003. Mas, quando nós tratamos de educação para relações étnico raciais, o escopo é maior, tudo começa com Lei de Diretrizes e Bases, que é a primeira, de 1996”, explicou Raquel Dias, coordenadora-geral de Educação para as Relações Étnico-Raciais da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação (MEC).
A coordenadora esclarece ainda que a responsabilidade de implementar a lei é dos estados e municípios e que o MEC não tem poder para determinar os currículos escolares de cada região nem penalizar os gestores locais.
“O MEC não tem poder de punição. Se determinado estado não cumpre a lei, não podemos, por exemplo, deixar de repassar o Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação] ou dar notas menores para as escolas. A lei não nos permite fazer isso, porque é prerrogativa do estado e do município e de cada escola do país fazer seu projeto político pedagógico”, disse Raquel Dias.
Formação de professores
Em nota, o Conselho de Secretários Estaduais de Educação (Consed), disse à Agência Brasil que a temática tem sido inserida nos currículos escolares como conteúdo programático, e não como disciplina. O conselho afirmou ainda que “um dos principais problemas enfrentados para a implantação da obrigação legal é a deficiente formação inicial dos professores, com relação a esses conteúdos”. O Consed acrescentou que os cursos de formação de professores ainda não adequaram seus programas curriculares para preparar futuros docentes.
O professor de sociologia da rede de educação do DF Murilo Mangabeira, 33 anos, relata que poucas escolas se destacam na aplicação da lei. Formado pela Universidade de Brasília (UnB), ele diz que os cursos de licenciatura dificilmente orientam os professores sobre essa temática. “Formei em 2008, na minha licenciatura não tinha nada previsto no currículo visando a aplicação da lei”, afirmou.
Murilo disse que muitos professores de Brasília têm o primeiro contato com a temática no curso de formação oferecido pelo Centro de Aperfeiçoamento dos Profissionais de Educação (Eape). “A Eape tem cursos para que os professores possam se capacitar e aplicar a lei. Só que esse cursos são ofertados em número menor do que o número de professores. E como são cursos voluntários, a adesão é incrivelmente baixa”, constatou.
Segundo o Consed, para os professores em exercício, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do MEC desenvolveu o Programa de Formação Continuada de Professores em Educação para o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana e para Educação Quilombola. O programa oferta cursos de aperfeiçoamento e especialização à distância, por meio da Universidade Aberta do Brasil (UAB).
“As universidades têm um papel fundamental nas ações afirmativas, mas esse trabalho, como a universidade assumir a pauta de educação para as relações étnico raciais no inventário de seus cursos, ainda está muito longe de ser cumprido”, destacou Raquel Dias.
Outras dificuldades
A coordenadora de educação para relações étnico-raciais do MEC ressalta que existem “absurdas resistências” para que a lei seja implantada nas escolas. Uma delas é o preconceito dos pais, além da falta de monitoramento da sociedade civil. Outro entrave, segundo a especialista, é o baixo investimento na área, o que acarreta em maior tempo para concretizar mudanças no sistema vigente e construir uma nova cultura de respeito à diversidade no âmbito da educação.
“Ninguém revoluciona a educação do dia para noite, nós estamos falando de uma educação que se mantém do mesmo jeito há seculos. Eu não tenho como dizer para você que em dez anos, com um investimento ainda aquém do que essa revolução promete, nós tenhamos conseguido mudar todo um sistema de educação”, avaliou.
“A persistência, a determinação é o mais importante até que cada gestor, cada executivo desse país entenda que estamos falando de desenvolvimento humano. Um aluno que se enxerga dentro da sala de aula com certeza será um cidadão que vai se enxergar capaz para construção do país”, completou Raquel.
Para o professor Marcos Reis, a principal dificuldade é trabalhar de forma isolada. Em mais de 20 anos de sala de aula, ele afirma que poucas escolas o apoiaram institucionalmente. Quando isso ocorreu, segundo ele, os resultados no comportamento das crianças foi muito mais satisfatório do que nas situações em que atuou sozinho. “Se fosse uma coisa feita pela escola, em coletivo, todo mundo junto, na questão institucional mesmo, a turma seria mais fácil de trabalhar. O que eu percebo na verdade é falta de vontade de professores em trabalhar a temática e de gestores também que não cobram”, criticou.
O Secretário Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Juvenal Araújo, acrescenta ainda o problema da intolerância religiosa como uma das principais barreiras à execução da lei no país.
“Alguns professores, por professar uma outra fé, se negam ao cumprimento da lei, por causa da demonização das religiões de matriz africana. E essa história mal contada faz com que no Brasil hoje nós tenhamos uma dificuldade na questão de referência. O não cumprimento dessa lei faz com que a verdadeira história no Brasil não seja contada”, alertou Araújo.
O secretário informou que tem trabalhado com o MEC pela criação de um módulo de busca de boas práticas da execução dessa lei no país. O objetivo é fazer um monitoramento da aplicação da lei nos estados e municípios e levantar iniciativas que possam servir de modelo em todo território nacional.
Conferência
A educação para relações étnico-raciais é uma das temáticas que serão discutidas na 4ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir), nos próximos três dias. O evento reunirá centenas de pesquisadores, ativistas do movimento negro, representantes da sociedade civil e do governo para debater diferentes aspectos e estratégias de enfrentamento ao racismo no país.
A programação tem início hoje (28) e se estende até quarta (30) com palestras, discussões em grupos de trabalho de vários desafios enfrentados pela população negra, além de exposições, atividades culturais e exibição de filme.
A Conapir, que este ano tem como tema “A Década Internacional do Afrodescendente”, instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU), é uma realização do Ministério dos Direitos Humanos, por meio da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).