Referência do surfe mira campeãs mundiais e quer medalha em estreia
Silvana Lima já tinha ficado sem surfar por causa de lesão, nunca devido a uma pandemia como a do novo coronavírus (covid-19). Foram mais de dois meses sem pegar na prancha até as atividades na água serem liberadas no Rio de Janeiro, onde vive com a namorada e os cinco cachorros: quatro buldogues franceses e um poodle. Com as competições internacionais canceladas em 2020, ela aproveita para treinar o máximo possível.
“Acho que a única coisa que tenho de consertar é a forma de competir, tem alguns erros, a forma de começar as baterias. É isso que eu e meu técnico [o ex-surfista Leandro Bastos] estamos vendo direitinho, em todos os treinos. Mesmo [treinar] no crowd [quando há muita gente na água] é importante, porque você fica mais esperta sobre quais ondas são boas e quais são ruins”, diz à Agência Brasil a surfista eleita oito vezes a melhor do país.
A temporada 2021 do QS, divisão de acesso à elite do surfe mundial, vai de janeiro a junho. Mas é para julho, principalmente, que a cearense de 35 anos direciona todo esse empenho. Ela integra a seleção que representará o país na estreia olímpica da modalidade, ano que vem. Além de Silvana, Tatiana Weston-Webb, Ítalo Ferreira e Gabriel Medina estão garantidos em Tóquio (Japão).
Conquista da vaga
A vaga foi conquistada em dezembro do ano passado, na etapa de Mauí, no Havaí, do Circuito Mundial de Surfe. As oito melhores do ranking mundial se classificavam para Tóquio, mas o limite de duas surfistas por país, que tirou atletas norte-americanas e australianas que estavam à frente do páreo, colocou Silvana, 12º do ranking, na briga com a neozelandesa Paige Hareb, 16ª. A eliminação nas oitavas de final custou à brasileira o lugar na elite do circuito, mas deu a ela um lugar na Olimpíada, já que Hareb caiu na mesma fase.
Por um lado, o adiamento dos Jogos devido à pandemia postergou o sonho olímpico por mais um ano. Por outro, pode ajudá-la a chegar 100% no Japão. “Em 2018 fiz uma cirurgia nos dois joelhos, então 2019 foi um ano muito puxado. Foi minha quarta cirurgia. Corri contra o tempo para me classificar. Para o meu lado, achei muito bom [o adiamento]”, analisa.
Além da compatriota Tatiana, que encerrou a última temporada em sexto no circuito, a cearense tem como rivais em Tóquio as norte-americanas Carissa Moore e Caroline Marks (atuais campeã e vice mundiais, respectivamente) e a australiana Stephanie Gilmore, que é heptacampeã do mundo. Silvana, porém, considera-se no páreo. “Chego sonhando. A ansiedade é imensa, mas quero estar 100%, representar meu Brasil da melhor forma. Não vou só para participar. Estou em busca de uma medalha”, afirma.
“Não é só [a vaga em] Tóquio. São várias as conquistas. As da vida pessoal, de onde eu vim, onde cheguei, de ter recebido vários nãos, de muita gente não acreditar e eu fazer com que acreditassem. É um filme passa quase todo dia na cabeça”, completa a surfista.
Ela não exagera quando menciona a trajetória. Nascida em Paracuru, a 84 quilômetros de Fortaleza, Silvana foi criada em um quiosque à beira da praia com a mãe e quatro irmãos. A família se mantinha com a venda de bebidas e marmitas. Na infância, como a casa não tinha quarto ou cama, o jeito era dormir em rede. Já para comer na escola, vendeu adesivos.
Apaixonada pelo esporte
O esporte fez parte da vida desde cedo. “Eu fazia tudo. Surfava, jogava capoeira e futebol”, recorda Silvana. E ela levava tudo a sério. Tanto que, hoje, acredita que parte da razão das lesões vem dessa infância. “Eu fazia mil coisas sem uma alimentação boa, às vezes nem comia direito. Acho que foi muito desgaste. Ainda mais que, jogando bola, dava aqueles trancos. Na capoeira queria dar pulo mortal. No surfe, nem se fala, queria dar aéreo”, conta.
Silvana acabou optando pelo surfe. Para seguir carreira, mudou-se para o Rio de Janeiro em 2002, aos 17 anos. Foi em cima da prancha que venceu seu primeiro campeonato e vendeu o prêmio (um automóvel) para dar uma casa a mãe. Ela ainda se sagrou duas vezes vice-campeã mundial, em 2008 e 2009, e bicampeã do QS. Já em julho deste ano, foi eleita a maior surfista do Brasil, em lista do jornal O Globo, após votação de 30 jornalistas especializados.
As contusões nos joelhos, porém, não deram trégua. “Todas foram a mesma coisa: ligamento cruzado anterior”, resume a brasileira, que fez a primeira cirurgia em 2006, nas duas pernas. Cinco anos depois, a nova lesão no joelho esquerdo impactou além do físico. “O patrocínio me mandou embora, foi bem difícil. Sem patrocínio, machucada, tendo que classificar novamente à primeira divisão. Tive que vender o apartamento e o que tinha para investir em [etapas do] QS para voltar à elite”, lembra Silvana, que, em 2012, rompeu outra vez o ligamento, mas do joelho direito.
Surfe feminino no Brasil
De lá para cá, Silvana recuperou os patrocínios, mas, por muito tempo, sentiu na pele o que é não ter apoio financeiro para a carreira. Uma realidade que avalia ser mais drástica entre as mulheres do surfe, com impacto no circuito mundial. Por muito tempo, a cearense foi a única surfista do país na elite feminina, enquanto na masculina há, atualmente, 11 atletas, sendo três campeões mundiais. Ela espera que Tóquio faça a diferença no cenário.
“Você conta nos dedos quantas surfistas do país têm patrocínio. Várias desistem por falta de incentivo. Espero que a Olimpíada mude o pensamento dos empresários. É triste ver isso e fico sem acreditar até hoje. Eles olham muito a beleza das meninas, não o talento. Talento a gente tem, só precisa de apoio”, desabafa Silvana. “Eu respeito totalmente o lado da Tatiana [que é gaúcha, cresceu no Havaí e compete pelo Brasil desde 2018], mas queria era realmente aquela brasileira que passou por tudo no Brasil, que competiu no Brasil”, conclui.