Coluna - Justo ou injusto?
A classificação funcional determina se o grau de comprometimento da deficiência de um atleta o enquadra ou não no movimento paralímpico e qual sua classe. Trata-se de um processo delicado, meticuloso e que sofreu mudanças em algumas modalidades já com o ciclo dos Jogos de Tóquio, no Japão, em andamento. As da natação provocaram várias alterações em categorias físico-motoras. André Brasil, por exemplo, campeão mundial e paralímpico, foi considerado inelegível nas provas em que era especialista e até recordista. Phelipe Rodrigues, também medalhista, quase passou pelo mesmo tormento.
O basquete em cadeira de rodas vive um cenário semelhante. No começo do ano, o Comitê Paralímpico Internacional (IPC, sigla em inglês) informou que a modalidade não faria parte da programação da Paralimpíada de Paris, na França, em 2024, e que até a presença em Tóquio estava ameaçada. O motivo? Desacordo entre os critérios de elegibilidade do IPC e da Federação Internacional de Basquete em Cadeira de Rodas (IWBF, sigla em inglês). O Comitê entendia que os critérios da federação davam abertura a atletas cujo comprometimento não os enquadrava no movimento.
O assunto foi pauta na Agência Brasil em fevereiro. Embora bata na tecla de que seu modelo é "forte e robusto", a IWBF iniciou a reclassificação dos atletas das classes 4,0 e 4,5 – as de menor grau de impacto físico-motor – de países que competirão em Tóquio, com base nos critérios do IPC. O presidente da federação, Ulf Mehrens, justificou a medida em comunicado recente, publicado no site oficial da entidade.
"A IWBF ainda acredita totalmente em sua filosofia de classificação e que o esporte deva ser inclusivo para qualquer um com uma deficiência elegível nos membros inferiores. O sistema de classificação no qual o jogo foi construído garante que os jogadores tenham direitos e oportunidades iguais de integrarem um time. Porém, como membro do movimento paralímpico e por ter assinado o código do IPC, a IWBF deve entrar em acordo com as demandas do Comitê, o que inclui refletir o código de classificação do atletas do IPC", sustenta o dirigente.
Dos 132 atletas reclassificados, 119 foram considerados aptos a competir na Paralimpíada, com nove inelegíveis, restando quatro casos que "dependem de mais informações". Por entender que as reavaliações para Tóquio estão perto do fim, o IPC suspendeu o prazo (que inicialmente era até 29 de maio) para a IWBF concluir o processo. O Comitê também eliminou as dúvidas de que o basquete em cadeira de rodas poderia ficar fora dos próximos Jogos, ao confirmar a modalidade no cronograma de 2021, divulgado na segunda-feira (3).
A presença da modalidade em 2024, porém, ainda é incerta. O Comitê determinou em janeiro que a federação "assegure que suas próprias regras de classificação e operação estejam alinhadas e totalmente compatíveis com o código do IPC" até 31 de agosto do ano que vem, segundo o comunicado divulgado no último dia 31 de julho. Caso contrário, o basquete para cadeirantes não será readmitido na próxima Paralimpíada. Por ora, conforme a entidade que gerencia o paradesporto no mundo, "a IWBF está excluída da programação de Paris".
O impasse em si caminha para uma solução. A IWBF espera finalizar a reclassificação dos atletas as classes 4,0 e 4,5 - incluindo os que não estarão em Tóquio - até o fim do ano, de maneira escalonada. Como as seleções brasileiras masculina e feminina não conquistaram vaga para 2021, os jogadores do país ainda serão avaliados.
E quem, de repente, ficou fora do movimento paralímpico? No comunicado da IWBF, Ulf Mehrens afirmou que a federação trabalha "para dar suporte a qualquer atleta impactado e criar mecanismos para que continuem jogando o basquete em cadeira de rodas". Ele também enfatizou que "um jogador considerado inelegível não burlou o sistema ou o deturpou intencionalmente, de forma alguma".
Discursos, porém, não consolam os nove atletas afetados pela reclassificação. É o caso da australiana Annabelle Lindsay. Em 2016, aos 17 anos, ela sofreu uma contusão no joelho. Após o trauma, deslocava a rótula sempre que tentava atuar no basquete "convencional". Na modalidade em cadeira de rodas, a jovem pôde defende o país internacionalmente, além de estudar - e jogar - nos Estados Unidos. Em postagem emocionada no Instagram, ela anunciou a aposentadoria "forçada", e ressaltou a importância do paradesporto em vida: “foi minha salvação, permitiu que viajasse o mundo e deu experiências que nunca sonhei".
David Eng, que nasceu com uma perna menor que a outra, também teve a carreira abreviada pela reclassificação. Porta-bandeira do Canadá na Paralimpíada Rio 2016, foi medalhista de ouro pelo país nas edições de 2004 e 2012. "Não é assim, obviamente, que pretendia encerrar minha carreira internacional. Ao mesmo tempo, o esporte trouxe muito a mim e à minha família", disse o agora ex-atleta paralímpico, de 43 anos, em depoimento à Federação Canadense de basquete em cadeira de rodas (WBC, em inglês).
"Essas pessoas, do dia para noite, foram retiradas do programa paralímpico. Durante muito tempo, foi dada a elas a oportunidade de prática. Acho que o processo poderia ser feito com um pouco mais de cuidado, apesar de o IPC ter avisado várias vezes à federação [sobre a necessidade de revisão na classificação], que não tomou as providências necessárias", resume o técnico da seleção brasileira masculina, Sileno Santos, à Agência Brasil.
Justo? Injusto? O cenário reforça o quão delicado - e difícil - é a classificação funcional. Por mais que se busque a objetividade nos critérios, a subjetividade também permeia o processo, ainda mais por se tratar de pessoas com históricos diferentes, apesar de deficiências que, às vezes, são parecidas. É uma questão que sempre estará em evidência, com decisões que nem sempre agradarão a todos. Cabe às federações e ao IPC encontrar um denominador comum para minimizar as polêmicas. O que não tem sido exatamente fácil no ciclo de Tóquio.