Cinco anos após tragédia, moradores de Nova Friburgo buscam contornar dor
Antônio José Fernandes, de 62 anos, volta todos dias ao local onde comemorou aniversários, natais e domingos na piscina. Só que no lugar da casa que foi de sua família por 30 anos, no centro de Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro, há um estacionamento com chão de brita, onde trabalha com o filho. A casa onde moravam o irmão, a cunhada, a sobrinha e a filha dela veio abaixo com a encosta que soterrou parte da rua. Ludmila e a filha, Beatriz, de 5 anos, morreram.
A Praça Presidente Getúlio Vargas, no centro da cidade, está a apenas dois quarteirões dali, com prédios valorizados, comércio e lazer, mas entre as casas de classe média da Rua Juvenal Namem, há uma fila de terrenos baldios dos dois lados. Sobre as casas que os ocupavam, caíram toneladas de terra, pedras e árvores, matando mais de 20 pessoas em janeiro de 2011. Nessa e em tantas outras vizinhanças de Nova Friburgo, 436 pessoas morreram e 36 estão desaparecidas até hoje. Em toda a região serrana do Rio, foram mais de 900 mortos.
Cinco anos depois da tragédia, ainda é possível ver os espelhos e ladrilhos de banheiros do único prédio da Rua Juvenal Namem, o Edifício Monte Carlo, que perdeu uma coluna inteira ao ser atingido pela terra que fez desmoronar as casas vizinhas, e hoje está interditado. Os escombros pendurados ficam bem em frente à sala de onde Antônio toma conta dos carros estacionados.
"Vejo sempre pessoas olhando o prédio e rindo. Achando que alguém que estava no banheiro tomou um susto", conta, indignado. "Virou uma atração turística, o que é uma coisa terrível". No dia da tragédia, ele lembra que a lama cobria o portão do prédio quando chegou, às 7h. Ao tentar subir a montanha de entulho para se aproximar da casa, foi advertido por um amigo: "Não vai lá, porque não adianta mais".
Construir um estacionamento no lugar da casa onde perdeu parte de sua família foi uma decisão que demorou quatro anos. "A gente vinha aqui e se sentia mal. Mas fizemos primeiro por medo de invasão. E, segundo, para melhorar o aspecto. Isso aqui estava muito feio. Daqui você vê a principal praça da cidade".
O filho de Antônio, Danilo Fernandes, 34 anos, lembra que a Juvenal Namem era uma rua tranquila, onde a família costumava estacionar os carros em dias de chuva, por ser mais elevada e ter menos riscos de enchentes."A gente convivia muito aqui e isso [o deslizamento] me afetou muito. Era uma casa onde a família toda se reunia, por ser grande, espaçosa, com piscina, churrasqueira. Ficava aquela criançada, porque a família é muito grande. Casa é sentimental, não é só material".
Espera
Moradora de uma encosta no bairro de Duas Pedras, Joelma Botelho, de 35 anos, não conseguia sequer saber onde ficava sua casa quando foi socorrida. Por volta de 4h, a lama invadiu a residência enquanto todos dormiam, arrastando parte da família morro abaixo. As paredes e o teto desmoronaram, e três dos cinco filhos não sobreviveram. O mais novo, Brayan, que tinha 2 anos na época, só foi encontrado às 15h e teve que ser transferido para o Hospital Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, para passar por cirurgias de enxerto em um dos pés.
A faxineira ficou meia hora soterrada e foi resgatada pelo marido, que a encontrou no meio da lama. "Não sabia onde estava ninguém. Fui arrastada pela água lá pra baixo e não tinha noção de onde estava. Estava escuro e chovendo muito", lembra. Antes de buscar ajuda médica, ela foi ao enterro dos três filhos e acompanhou o mais novo na internação. Três dias depois, no entanto, foi internada com pneumonia e descobriu que havia madeira e vidro alojados em seu corpo por causa do desmoronamento.
A família só conseguiu se reunir quase um mês depois, em um dos abrigos da cidade, onde moraram por nove meses. Lá, ouviram a promessa de que receberiam uma casa nova para morar, o que só se cumpriu em novembro do ano passado, quase cinco anos depois, quando se mudaram para um apartamento do conjunto Terra Nova, que já recebeu 1,7 mil famílias desde a tragédia. Segundo a Prefeitura de Nova Friburgo, 250 pessoas ainda recebem aluguel social no município, e não há data prevista para a próxima entrega de moradias.
Além de perder a casa, a família de Joelma também enfrentou problemas financeiros. A faxineira passou a ter mais dificuldade de encontrar trabalho, e o marido, que era pedreiro, foi demitido da empresa de construção em que trabalhava no dia do enterro dos filhos. "O chefe dele cercou ele na rua e perguntou se ele não iria trabalhar. Ele tinha que ter vergonha de perguntar isso", conta Joelma.
Com ensino fundamental incompleto, Nilcilei dos Anjos, 27 anos, teve que tirar uma nova carteira de trabalho depois do deslizamento, mas nunca mais conseguiu assiná-la. "Faço bico, mas não é em qualquer lugar que eu posso trabalhar, porque fiquei com um problema na perna", conta o rapaz.
Nilcilei e Joelma tiveram mais um filho desde o desastre e, no oitavo mês de gestação, ela conta que a família luta agora para conseguir mobiliar o apartamento onde moram. "No meu quarto tem uma cama de casal que minha mãe me deu, e alguns móveis eu ganhei no abrigo. No quarto dos meus filhos ainda não tem cama. Eles dormem no chão".
"Não tem perigo, não"
No bairro de Duas Pedras, onde Joelma morava, ainda há marcas do deslizamento. O vendedor de roupa íntima Gilson da Cunha, 68 anos, é o único que ainda mora na rua João Belório e não pensa em se mudar. No dia do temporal, ele lembra que uma tromba d'água desceu da encosta de pedra e levou casas e carros na rua. Os moradores deixaram para trás as casas que ficaram de pé. "Foi igual você pegar uma bacia e entornar. Desceu arrastando tudo".
Na parte mais alta da rua, depois de passar por terrenos vazios, moradias quebradas e outras em que portas e janelas foram retiradas, se chega ao terreno do vendedor, onde há quatro casas: uma para ele e a mulher, e três para os filhos e netos. "Desde 1969, eu moro e trabalho aqui. Tudo que eu tenho está aqui. Mas não tem perigo, não", diz, que comprou manilhas para construir uma canalização para a água que desce da encosta quando chove. No fundo dos terrenos, uma espécie de cânion de barro cresce desde a enxurrada de 2011 e já engoliu árvores e ruínas das casas abandonadas.
Gilson diz que já pagou caminhões para jogarem terra no buraco e constantemente retira os galhos e árvores que se acumulam para que o caminho da água não seja obstruído. Enquanto isso, ele continua vendendo roupas das confecções locais e levando para a Baixada Fluminense. "Se acontecer alguma coisa que consiga derrubar minha casa, [é porque] Friburgo inteira acabou".
O empresário Dejair da Silva, 64 anos, não teve a mesma sorte de poder continuar seu negócio. No dia da chuva, o canal nos fundos da fábrica de carrocerias de caminhão encheu e levou 1,5 mil metros quadrados do terreno, que foi considerado de área de risco, o que inviabiliza a produção. O faturamento, que chegava a R$ 20 mil por mês, hoje não passa de R$ 1 mil com pequenos trabalhos de reparo. A fábrica virou uma oficina.
"Como estamos em área de risco, não posso nem comprar a madeira para fabricar as carrocerias, e não posso construir nada. Hoje, fazemos apenas coisinhas pequenas de R$ 100", diz, que teve quatro carrocerias e um caminhão engolidos pela terra. A solução encontrada por Dejair e os quatro sócios foi vender o terreno por um preço bem abaixo de mercado.
Área de risco
Em Nova Friburgo, cerca de 24 mil pessoas ainda vivem em área de alto risco. De acordo com o secretário municipal de Defesa Civil, João Paulo Mori, aproximadamente 20 mil pessoas moram em locais sujeitos a deslizamentos de encostas e 4 mil em terrenos que podem inundar.
“Mesmo o governo federal tendo construído no município mais de 2 mil apartamentos, infelizmente ainda temos muitas pessoas em área de risco. Alocar mil pessoas aqui no município é muito difícil, imagina 24 mil. Friburgo é um vale. Temos 200 mil habitantes em uma cidade onde só caberiam 70 mil. Aqui ou a pessoa constrói na encosta ou na beira do rio”, disse Mori.
Os moradores já foram notificados e assinaram um documento em que informam estar cientes do local onde vivem. Para evitar novos desastres, a prefeitura tem um sistema de monitoramento das chuvas e de alerta por meio de sirenes e de mensagem por celular.
“Temos 35 sirenes instaladas em comunidades, agentes 24 horas em unidades de proteção civil, engenheiros e viaturas tracionadas na Defesa Civil. Na época, não tinha nenhum engenheiro e nenhuma viatura. Se, em 2011, tivéssemos o aparato que temos hoje no município não teriam morrido mais de 400 pessoas”.
* Colaborou Vitor Abdala