Ouvidoria de polícias vê indícios de tentativa de execução de adolescentes em SP
A Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo vê indícios de tentativa de execução na abordagem de três adolescentes durante uma abordagem, na zona sul, no final de janeiro. Na madrugada do dia 26 de janeiro, os dois passageiros de um carro roubado, Danilo* e Luís*, foram baleados pela Polícia Militar e ficaram com graves sequelas. O primeiro, de 16 anos, está paraplégico e o outro, de 17 anos, tem dificuldades para andar e falar. A Corregedoria da Polícia Militar investiga o caso.
O carro parou depois de uma perseguição, quando bateu numa barreira policial montada para interceptar o trio, na Avenida Washington Luís, próximo ao Aeroporto de Congonhas. O motorista, Leonardo* (17 anos), também foi baleado, sem tanta gravidade. A própria perseguição é estranha, na opinião do ouvidor. “Por que essa perseguição tão implacável a esses meninos?”, questionou, em entrevista à Agência Brasil, o ouvidor das Polícias do Estado de São Paulo, Júlio César Fernandes Neves.
“Estamos entendendo que os policiais que foram ao encalço desses três rapazes foram lá para matar os meninos”, acrescentou o ouvidor. Entre os elementos que mostram que a ação dos policiais militares passou dos limites estão os ferimentos dos jovens. Ao menos dois deles foram atingidos nas costas. “Quando você vê que tem tiro nas costas e os tiros não são nos membros, esse tiro não foi para imobilizar, foi para matar”, ressaltou o ouvidor.
Perseguição
Na versão dos policiais, apresentada no boletim de ocorrência registrado no 27º Distrito Policial da capital, os jovens descumpriram uma ordem de parada e atiraram nos policiais através do vidro traseiro do carro. Nesse momento, segundo os PMs, teria havido o primeiro confronto, quando o sargento Vilson Rodrigues Lima afirma ter disparado seis vezes. Danilo e Luís dizem que Leonardo, o motorista, decidiu fugir para não ser preso, uma vez que havia roubado o carro três dias antes do ocorrido. Os dois adolescentes negam ter participado do roubo.
Em seguida, os policiais dizem que o trio continuou a fuga até a colisão, quando o carro em que estavam os jovens se chocou contra uma viatura e outros quatro veículos que haviam sido parados pelos policiais. Segundo o relato dos PMs no boletim de ocorrência, depois do acidente, Danilo, que estava no banco do passageiro, tentou sair do veículo com uma pistola em punho.
Os agentes dizem que tiveram de reagir devido à ameaça de agressão iminente. Os adolescentes negam ter entrado em confronto com os policiais. Os policiais afirmam ainda que Leonardo, o motorista, também tinha um revólver na mão. Em depoimentos à Justiça e em conversas com as famílias, os jovens negam que estivessem armados. Eles dizem que, após a batida, os policiais simplesmente abriram as portas do carro e efetuaram diversos disparos.
O cabo Thiago Farias disse ter dado seis tiros que, de acordo com o relato, atingiram os três ocupantes do carro. No entanto, apesar de Leonardo também ter sido baleado, só os tiros recebidos por Danilo e Luís já contabilizam um total de seis. Apesar de os agentes que participaram dessa última abordagem dizerem que Leonardo e Danilo estavam armados, não há nenhum indício de que tenha sido feito algum disparo contra os policiais. No relatório feito na delegacia sobre os itens apreendidos, as armas que estariam em poder dos adolescentes são descritas como em mau estado de conservação.
Ao contestar a versão dos PMs, Danilo contou aos pais ter ouvido cerca de 20 disparos, fora os que foram feitos durante a perseguição. Duas testemunhas ouvidas na delegacia apenas relatam terem ouvido vários tiros após a batida, sem precisar a origem. O ouvidor acredita que não faz sentido nem os policiais atirarem em todos os três, nem a quantidade de disparos. “Com uma convicção enorme, a gente sabe que isso é uma coisa que saiu do limite do bom policial. O bom policial não poderia jamais dar tantos tiros assim”, ressaltou Fernandes.
Disparos pelas costas
O prontuário médico de Danilo indica ferimentos por arma de fogo no braço esquerdo, na coxa direita, nas costas (na parte superior, do lado direito) e na coluna vertebral. O documento assinado pelo médico Antonio Oscar Costa Franco traz as informações sobre o estado do paciente durante internação no Hospital Municipal Dr. Arhur Ribeiro Saboya. Sobre a bala que atingiu a terceira e a quarta vértebras do rapaz, o neurocirurgião Jader Pacheco Rabello anota que o rastilho de chumbo indica que o projétil veio da direita para esquerda em trajetória levemente ascendente, causando paralisia dos membros inferiores.
Luís, que estava no banco detrás do carro, recebeu dois tiros, um na parte posterior da cabeça, próximo da nuca, e outro nas costas. Devido aos ferimentos, o adolescente teve perda de massa encefálica, passou dias em coma e contraiu meningite enquanto esteve internado. Atualmente, o ferimento na cabeça ainda não cicatrizou. Na barriga, o rapaz exibe a marca de uma das cirurgias, que começa logo abaixo do peito e chega à cintura.
O relatório assinado pelo médico Pedro Rocha Kalluf, do Hospital São Paulo, indica que, além da lesão cerebral, uma tomografia mostrou resquícios de material metálico dentro do crânio de Luís. A limpeza da área só pôde ser feita um mês após a internação, no dia 25 de fevereiro, quando a equipe médica considerou que o quadro clínico do jovem havia se estabilizado.
"Você é ladrão?"
Dos fatos ocorridos depois da batida, Luís tem poucas lembranças. Ele diz que se recorda de um policial que abriu a porta do carro e perguntou: “Você é ladrão?”. O jovem negou. Então, segundo o adolescente, o PM pediu para que ele se virasse para ser algemado. Nesse momento, o rapaz conta que foi atingido pelos disparos.
Antes do incidente daquela madrugada, Luís estudava e trabalhava. Ele era repositor em um supermercado. Atualmente, tem dificuldades para se movimentar e para falar. Apesar das limitações, o pai considera a recuperação do filho milagrosa e o levou para dar testemunho na igreja evangélica que frequentam. “Tanto Deus está na terra, que nenhum dos três morreu”, disse o pai que tem 38 anos e trabalha como segurança. Luís não foi apreendido e se recupera em casa.
Com duas passagens pelo sistema socioeducativo, nos últimos tempos, Danilo fazia, de acordo com a família, cursos técnicos. O pai tem 53 anos e está desempregado. Ele tenta agora tirar o filho da Fundação Casa, para onde voltou a ser internado. Ele argumenta que a instituição que cuida de jovens infratores não tem os meios necessários para atender uma pessoa nas condições em que o filho está.
“[Quero] tirar ele de lá. Trazer para casa para tratar dele, porque na situação em que ele está ele não representa perigo para ninguém: está paraplégico. Em segundo lugar, eu já estive lá e não tem estrutura para cuidar de uma pessoa paraplégica”, disse o pai ao receber a reportagem da Agência Brasil em sua residência, um barraco de madeira em uma favela da zona sul da capital paulista.
Após o ocorrido, Leonardo, o motorista do veículo, também foi apreendido e cumpre medida socioeducativa.
Investigação
A Corregedoria da Polícia Militar informou em nota que está em andamento um inquérito policial militar para apurar o caso. “Análise preliminar não indicou irregularidade na ação policial, não havendo indícios de tentativa de execução”, acrescentou o órgão. A secretaria afirma ainda que nenhum dos jovens sofreu ferimentos nas costas.
Porém, o comunicado – emitido por meio da Secretaria de Estado de Segurança Pública – ressalva que nenhuma hipótese é descartada na investigação. “Se surgir algum fato novo, os trabalhos poderão ser assumidos pela Corregedoria da PM a qualquer momento.”
*Os nomes são fictícios.