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Direitos Humanos

Um tiro roubou meu filho: mães que lutam pela vida da juventude negra

Especial fala de mulheres que viraram líderes a partir de suas perdas
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Sumaia Villela e Pedro Lacerda
31/05/2023 - 07:35
Brasília
Brasília (DF) - Mães que perderam seus filhos pra violência policial, Ana Paula Oliveira segura cartaz com a foto do seu filho Johnatha Oliveira.
Foto: Arquivo pessoal/Divulgaçāo
© Arquivo Pessoal/Divulgaçāo

Mãe, para muitas mulheres, é verbo. Lutar é quem são, indissociáveis de suas maternidades.

Elas não começaram uma boa ação porque sentiram que poderiam fazer algo pela sociedade, simplesmente. Em grande medida, não é uma escolha. Elas foram levadas pela vida a se tornarem protagonistas de lutas coletivas. Ao defender o direito à vida dos filhos, acabaram representando grupos inteiros.

Como mães obrigadas a construir uma trajetória de luta por serem uma mulher preta, com uma filha ou um filho preto, moradores das periferias do último país a abolir a escravidão nas Américas: o Brasil. Que lutam a partir do luto. Porque o direito de viver para além da infância e da juventude foi tirado de seus filhos.

Estamos falando de mulheres como Ana Paula Oliveira, nascida e criada na favela de Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro. E de seu filho Johnatha, que morreu na tarde do dia 14 de maio de 2014, aos 19 anos, após deixar a namorada em casa. Ele passou por um local onde havia um conflito entre moradores e policiais e foi atingido com um tiro nas costas. Tiro que a perícia criminal confirma ser da arma de um PM.

"Polícia assassinou o Johnatha, tá esculachando morador".

"Quando escureceu, eles chegaram dando tiro ali, aí pegou no meu sobrinho. Olhas as balas".

"A minha filha está lá. Antes de matarem ele, ele estava no colo da mãe, beijando a mãe. Parecia que ele estava despedindo".

Esse é um trecho do documentário Cada Luto, uma Luta, do Victor Ribeiro e da própria Ana Paula, que está disponível no YouTube. As entrevistas foram feitas pela equipe de um jornal que esteve no local pouco depois do assassinato.

Após a morte, a reputação do jovem foi o alvo da vez. Uma policial testemunha de defesa do atirador afirmou que o jovem era traficante. A mãe foi obrigada a provar que o filho não merece morrer aos olhos da sociedade. Ana Paula fala sobre isso.

“Não basta matar o corpo. Tem que desumanizar e criminalizar a vítima para justificar essas práticas violentas infundadas do braço armado do Estado. Já educamos nossos filhos para sair com identidade, ter que o tempo todo que se identificar e comprovar que são produtivos, que estudam, que trabalham. Mostrar a carteirinha da escola. Se colocamos em um curso, já tiramos xerox de documento que comprove. E mesmo assim eles não têm a vida garantida. Para um jovem branco de classe média ou alta, ele não precisa comprovar que estuda ou trabalha”.

O contato com outras mulheres que passavam pela mesma perda e a inspiração nas Mães de Maio, movimento de São Paulo contra um massacre promovido em 2006, levaram Ana Paula a sair de uma dimensão individual, de uma dor pessoal, para enxergar os padrões do racismo estrutural nas histórias de outras mães e outros filhos. Ela foi uma das fundadoras do movimento das Mães de Manguinhos.

“Quando eu saio de Manguinhos e vou participar de outros atos contra o extermínio da juventude negra, encontro outras mães e encontro um pouco da resposta para a pergunta que muito me fiz no dia que recebi a notícia no dia. Por quê? Por que a polícia matou meu filho? E eu me vejo nelas. Porque eram todas mulheres negras, moradoras de favelas, de periferia. E as fotos do filhos estampadas nas camisas que elas vestiam eram de jovens negros. Aí começo a ter esse entendimento e a resposta. Ele não estava no lugar errado, na hora errada. Não tinha feito nada de errado. Simplesmente era mais um jovem preto dentro de uma favela. E isso causa mais revolta dentro de mim e vontade de seguir na luta, denunciado a violência do Estado”.

Após 9 anos da morte de Johnatah, Ana Paula ainda aguarda julgamento do policial que atingiu seu filho. O PM, que já tinha acusação de triplo homicídio à época, responde ao processo em liberdade.

Indigente

Em outra comunidade do Rio de Janeiro, a favela do Muquiço, uma mãe também vive sem respostas sobre a perda do filho: a ambulante Bruna Mozer. Aos 18 anos, Marcos Luciano foi assassinado, segundo a polícia, em um auto de resistência. Os relatos de testemunhas, no entanto, direcionavam o caso para uma execução. Bruna relembra o dia da morte:

“No dia 17 de janeiro eu estava trabalhando nos arcos da Lapa, de madrugada. Às 3h30 eu fui embora. 7h meu telefone tocou, era a madrinha do meu filho - ele morava em Guadalupe com o pai, na Comunidade do Muquiço. Ela perguntou onde eu estava, falou: 'se arruma e vem pra cá agora'.; Ela estava chorando muito, pensei: 'aconteceu algo com meu filho'. Eu saí desesperada e, quando cheguei, tinha várias viaturas debaixo do bloco, um monte de gente em volta, um cordão, um fio isolando as paredes do bloco para ninguém passar e um corpo estendido no chão coberto com lençol. Quando eu levantei o lençol, era meu filho. Quentinho, ainda. Eu abençoei, entreguei a vida dele nas mãos de Deus.

Depois fiquei sabendo pelos moradores que moram no bloco da frente que o caveirão entrou na favela, meu filho estava debaixo do bloco, todo mundo correu e ele correu também. Aí ele tomou um tiro no ombro, caiu de joelhos e se entregou para a polícia com as mãos para o alto. Aí o polícia deu um tiro na cabeça dele e colocaram ele no auto de resistência, como se tivesse trocado tiro da polícia. Tiraram cartuchos de munição do bolso dele, mas a arma até hoje não vi, não sei que fim deu. Se teve troca de tiro ele deveria ter uma arma, não só o cartucho”.

Morto o corpo, foram apagados ainda os últimos vestígios de Marcos. Depois de uma longa jornada entre o IML, funerária, velório, papelada para liberar o corpo, o jovem acabou registrado como indigente, como explica sua mãe.

“Meu marido é semianalfabeto, só sabe ler e escrever o nome dele. Aí ele levou a guia que eles deram e eu fui para a igreja velar o corpo dele. Aí estava velando meu corpo do meu filho, meu marido entregou o atestado de óbito, e estava escrito 'homem de pai e mãe desconhecido, residência ignorada'. No lugar do CPF estava um monte de ‘x’. Aí falei: ‘mataram ele de novo?’".

Cinco anos depois, Bruna questiona tanto as circunstâncias da morte do filho como a permanência do óbito sem identificação: “eu não quero morrer antes de mudar esse óbito. Quando o Estado matou meu filho ele tinha um nome: Marcos Luciano Mozer de Souza, filho de Bruna Cristina de Melo Mozer e pai de Marcos Roberto Mozer de Souza. O Estado não pode executar meu filho em um país que não tem pena de morte e me dar um atestado de óbito com homem de de pai e mãe e residência ignorada. Foi como ele tivessem matado meu filho de novo”.

População negra como alvo

Seja por bala perdida ou achada, agentes de segurança do Estado mataram 6.145 pessoas em 2021 no Brasil, dado mais atual do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no ano passado. Do total que teve a cor/etnia/raça identificada, 84% são negros. Aproximadamente 5 em cada 6 mortos.

Negros são ainda as principais vítimas quando se fala de homicídios em geral, segundo o Anuário. Cerca de 78% dos 47.772 assassinatos ocorridos em 2021 vitimaram pessoas pretas ou pardas. São 37 mil e duzentas pessoas – a maioria jovem e do sexo masculino.

É como se perdêssemos, em um ano, toda a população de Vassouras, no Rio de Janeiro, ou de Petrolândia, em Pernambuco.

A jornalista e doutoranda em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (UnB), Maíra de Deus Brito, que pesquisa o assunto, aponta que os casos e as estatísticas identificam um modus operandi, revelam um racismo estrutural expresso no extermínio da juventude negra. E a impunidade é um dos braços dessa violência. A pesquisadora dá o exemplo das Mães de Acari, que se mobilizaram após 11 jovens desaparecerem pelas mãos de um grupo de extermínio, em 1990.

“Me preocupa muito que exista uma parcela considerável de agentes de Estado que estão sendo os autores dessas mortes. Por que o Estado permite? Por que a impunidade é tão grande, por que os casos se arrastam por até 20 anos? E aí as Mães de Acari chamam a atenção porque foi um dos primeiros, senão o primeiro grupo organizado de mães. Estamos falando do início da década de 1990, e se não me engano todas essas mulheres já morreram, e o caso segue em impunidade”.

Sobre Ágathas e Mirellas

Maíra destaca que o Brasil está perdendo, literalmente, o seu futuro quando permite que esses jovens partam tão cedo, e de maneira tão violenta. Para explicar, cita outro caso emblemático, o da menina Ágatha Félix, morta aos 8 anos quando voltava para casa junto com a mãe, no Complexo do Alemão.

“Era uma boa aluna, estudava inglês, fazia ballet. E eu fico pensando: com a morte da Ágatha a gente deixou de ter uma futura cientista, uma futura bailarina, uma futura dona Ivone Lara, uma futura Lélia Gonzalez. Então a gente está perdendo a chance de dar continuidade a obras e projetos incríveis que outras pessoas negras fizeram lá atrás porque simplesmente o Brasil está deixando que a juventude negra morra”.

Assim como Ágatha, Mirella do Carmo Barreto foi embora cedo pelo tiro que sobrou de mais um episódio policial na periferia. Desta vez, na comunidade da Gomeia, em Salvador. Aos 6 anos de idade, em 17 de março de 2017, Mirella foi atingida ao lado da mãe, Edineide Barbosa do Carmo, após estender roupa no varal. É Edineide quem conta o que aconteceu e como o caso segue sem uma conclusão.

“Por volta de 20h30 estava com ela em casa, subi para a laje, fui estender roupa com ela. Estendi e, quando olhei para baixo, avistei dois policiais. Eu falei ‘Mirella, vamos sair daqui, pois tem dois policiais aqui embaixo’. Quando terminei de falar deram um tiro e pegou no braço dela e transfixou por dentro. Quando chegou na UPA, não resistiu. 12 de maio ela faria 13 anos de idade.

Como eu me sinto? Um vazio. Não consigo me alimentar direito. Só tinha a ela, planejei ela. A gente está lutando por justiça, pensamos até que seria mais rápido, mas só agora vai acontecer a segunda audiência de instrução”.

Lutar para não normalizar

Edineide é uma das mães atendidas no projeto Minha Mãe Não Dorme, do grupo Odara – Instituto da Mulher Negra. O projeto articula mulheres de periferia e trabalha para não deixar que assassinatos de jovens negros sejam esquecidos pela mídia, pela Justiça ou pela sociedade. A coordenadora Gabriela Ashanti diz que é preciso lutar contra a naturalização dessas mortes, tanto do ponto de vista coletivo como na percepção de cada mãe que vive a perda.

“Não é porque são violência que ocorrem há muito tempo – seculares – que elas devam ser normalizadas, naturalizadas. A nossa sociedade foi colocando isso como parte do nosso cotidiano, como se o nosso dia a dia tivesse que lidar com isso e seguir. A gente segue a vida porque não temos opção, vamos fazendo nossas coisas para nos manter de pé, sobreviver, criar modos de vida minimamente saudáveis. Mas é bom que as pessoas o tempo todos sejam lembradas que isso é uma perversidade que mantém a nossa lógica colonial e escravista vigendo.

Então contribuir para que essas pessoas tomem consciência vai fazer com que elas não tomem isso só como mais uma dimensão do seu dia a dia e que não deve receber a devida atenção, indignação e manifestação contrária”.

E essa mobilização pode ser poderosa. A luta e o luto de Ana Paula levaram sua voz para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, onde o Brasil foi exposto pelo extermínio da juventude negra em 2015. Ela foi uma das representantes das mães pretas do país que passam por isso ou vivem com medo do mesmo destino.

A sua vida, agora, é abraçar tantos outros casos e seguir lutando para que os filhos negros vivos possam assim permanecer. E que os mortos tenham justiça.

“Eu luto por nove anos, e meu maior desejo é que nenhuma mãe mais passasse pela dor de perder o filho dessa forma. Por isso não é certo, isso não deveria ser aceito por ninguém em uma sociedade que se diz democrática. É uma dor que eu vou carregar para o resto da minha vida enquanto eu respirar. Mas é o que me dá força, ao mesmo tempo, é saber que eu sou mãe de uma pessoa maravilhosa, um ser de luz, que é o Johnatha. Ele transforma minha vida tanto com a sua chegada - porque não foi uma gravidez planejada - como com a sua partida. Ele me torna essa mulher que eu sou hoje. Através dele eu consigo saber quem eu sou, de onde eu parti e aonde eu quero chegar.

Se hoje eu pudesse falar alguma coisa para ele, eu falaria: muito obrigada, meu filho. Eu tenho muito orgulho de ser sua mãe”.

 

CRÉDITOS

Este radiodocumentário da Radioagência Nacional teve a produção e apuração de Pedro Lacerda, que assina a reportagem “Quando eles não voltam: mães lutam pela memória de seus filhos”, a versão escrita deste conteúdo. O roteiro e narração é de Sumaia Villela. A edição é de Beatriz Arcoverde. A sonoplastia, de José Maria Pardal. 

As histórias fazem parte de uma série especial Mães que Lutam, publicadas na Agência Brasil. Outras três reportagens detalham ainda batalhas travadas por mulheres em defesa da vida de seus filhos em seu sentido mais amplo:

Mães relatam as dores e vitórias da trajetória pela educação inclusiva

Mães se mobilizam por direitos de crianças e adolescentes trans

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