Soul é reprimido ao contestar o mito da democracia racial
No mês que completa 60 anos do golpe a Rádio MEC preparou o especial "Resistência da Cultura na Ditadura", que conta como a Música Popular Brasileira, o Samba, o Soul, o cinema e o teatro resistiram a censura e as perseguições. Esta terceira reportagem trata da repressão que o nascente movimento soul carioca sofreu. A resistência estava também nos bailes de soul!
Ainda hoje, muito pouco se fala sobre a repressão que a ditadura empreendeu contra o nascente movimento soul carioca, que começa a se estruturar no Rio de Janeiro na virada dos anos 1960 para 1970, na esteira dos ventos antirracistas que sopravam dos Estados Unidos.
Historiador e autor do livro “Dançando na mira da ditadura: soul e violência contra a população negra nos anos 1970”, Lucas Pedretti explica de que maneira a doutrina de segurança nacional fez os militares reprimirem o movimento soul carioca:
"Essa interpretação sobre a história do Brasil que os militares compartilham a partir da doutrina da segurança nacional, ela é profundamente atravessada por aquilo que a gente chama do mito da democracia racial, ou seja, uma ideia equivocada de que o Brasil seria um país sem racismo. Rapidamente os bailes se tornam um objeto de interesse da ditadura porque eles estão indo contra aquele mito da democracia racial, aquela ideia de que o Brasil seria um país sem racismo. Eles tão propondo a celebração de uma identidade negra e isso é inaceitável para o regime. É inaceitável como a juventude negra autônomamente se organiza pra promover festas em que pra além do seu momento de lazer elas vão ter ali um momento de constituição de uma conscientização racial e de crítica ao racismo brasileiro. Eles vão começar a achar que os bailes podem estar sendo espaços de constituição do que eles vão chamar por exemplo do movimento dos panteras negras."
Pedretti vê na ditadura empresarial-militar a normalização de uma violência contra a juventude pobre, negra e periférica que perdura até hoje no Brasil:
"Quando a gente pensa na ditadura militar, muitas vezes a gente pensa nessa classe média, universitária mobilizada, né? E ao contar a história dos bailes, a gente adiciona pelo menos dois elementos a essa história, a primeira um elemento com mobilização negra muito presente também é a história dos bailes me permite perceber, a ditadura também como esse momento de aprofundamento de uma violência que se dá fundamentalmente porque aqueles sujeitos simplesmente existem, não é porque eles resistem, né? È porque eles resistem. Essa violência cresce depois da ditadura. Então a gente tem a a constituição de 1988, e dois anos depois você tem uma chacina em Acari, que mata e desaparece com onze jovens negros, na favela de Acari e isso não é tratado como um problema da democracia.
Produtor cultural e um dos principais organizadores dos bailes soul no Brasil durante a ditadura, Dom Filó assim se recorda daquele período:
"Em 1976 tivemos o início da repressão pública né? Porque se a gente já vinha sendo observado mas publicamente foi em 1976 que começaram a repressão mais direta e pública junto à marcha black. Vários líderes de equipe foram perseguidos e alguns detidos para averiguação. Eu fui um deles, sendo capturado e levado para interrogatório. Eu não sofri nenhuma violência física e sim intelectual e moral.
Dom Filó assim define a empreitada do movimento soul no Brasil naquele período: "O movimento black rio e suas variações pelo país constituem um dos pilares da reorganização do movimento negro contemporâneo. Em suas versões mais disruptivas e insurgentes. Um grupo de jovens ressignificou toda a nossa negritude. Traduzindo para a cena brasileira o black power americano. E claro, enfrentando de maneira ampla a ditadura militar e o mito da democracia racial nesse país."
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* O especial conta com a colaboração de Beatriz Arcoverde, da Radioagência Nacional.