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Direitos Humanos

Quando a farinha é pouca: petróleo, renda e o bolo solado da ditadura

Novo episódio de Perdas e Danos fala de economia pré e pós-golpe de 64
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Eliane Gonçalves e Sumaia Villela - Radioagência Nacional
09/05/2024 - 14:39
São Paulo e Brasília
Banner do episódio 6 do podcast Perdas e Danos, primeira temporada: Futuro Interrompido. O tema é economia antes e depois do golpe de 1964
© Caroline Ramos - Arte/ABr

Encampação das refinarias de petróleo. Reforma fiscal. Valorização do salário mínimo. Temas que poderiam estar sendo discutidos hoje, de tão atuais. E que já eram parte da disputa em 1964, presentes no pacote das Reformas de Base de João Goulart. No comício da Central, no dia 13 de março daquele ano, o presidente anunciou a encampação, ou seja, a estatização de cinco refinarias privadas. Segundo Jango, a partir daquela data, a refinarias pertenceriam ao povo, porque pertenciam ao “patrimônio popular”.

Como aqui no podcast Golpe de 64: Perdas e Danos, estamos tratando do Brasil que poderia ter sido e não foi, graças ao golpe de 1964, já dá para imaginar que não foi bem assim. O decreto, assinado por Jango pouco antes do discurso, foi revogado em 1965. Das cinco refinarias encampadas, apenas uma segue sendo da Petrobras.

No sexto episódio, “Meu pirão primeiro”, discutimos a disputa em torno do petróleo e da Petrobras nesse começo da década de 1960. Neste ano, inclusive, os petroleiros fizeram a primeira greve da categoria, na Bahia. A motivação? O fato de que os trabalhadores na Bahia recebiam salários menores, como explica Germino Borges, petroleiro aposentado e ex-presidente do Sindipetro, o Sindicato dos Petroleiros da Bahia.

“Era quase a metade do salário dos petroleiros de São Paulo e Rio. Então, um dos diretores do sindicato, na época, descobriu essa diferença. Os petroleiros fizeram a greve, que foi chamada ou “Equipara ou aqui para”. Ou seja, nós éramos como se fossem trabalhadores de segunda categoria dentro da Petrobras. Então, esse foi o primeiro grande enfrentamento que houve e conseguimos sair vitoriosos”. 

Luci Praun, socióloga e professora da Universidade Federal do Acre e da Pós Graduação da Federal do ABC explica como a greve de 1960 ajudou a criar uma identidade de categoria que fortaleceu os petroleiros. E, com isso, a luta pela encampação das refinarias privadas. 

“Parte desse processo de luta dos petroleiros é conseguir condições de trabalho e direitos iguais para o território nacional. Então, a gente vai observar que, primeiro, há diferença salarial entre trabalhadores da Petrobras de Mataripe, na Bahia, e trabalhadores da Petrobras que estão em Cubatão, por exemplo, em São Paulo. Os de Cubatão com salário um pouco mais alto do que aqueles que estão em Mataripe. Os que estão nas refinarias privadas, menos ainda, estão aos poucos se criando uma identidade de categoria que vai fazendo com que esses trabalhadores lutem, não só pela equiparação de direitos entre as diferentes refinarias, mas pela encampação das refinarias privadas, tornando elas propriedade do Estado brasileiro”.

Esse processo de construção da identidade da categoria, a chamada “era de ouro dos petroleiros”, foi interrompida pelo golpe de 64, que colocou o movimento sindical como um dos alvos prioritários da repressão. Segundo o novo regime, a Petrobras era alvo de um processo de “comunização”. Pelo menos 516 trabalhadores foram demitidos acusados de serem subversivos ou comunistas. A empresa estatal ganhou um órgão de repressão pra chamar de seu, conta Luci Praun.

“Quando acontecem as ocupações das refinarias, existem situações em que os trabalhadores são presos. Alguns, inclusive, dentro de unidades da empresa, onde acontecem sessões de tortura”.

A perseguição aos trabalhadores, no entanto, não ficou restrita à Petrobras ou às empresas estatais. Registros do Dops, o Departamento de Ordem Política e Social, em São Paulo, um dos mais ativos aparelhos de tortura durante a ditadura, mostram que dirigentes da Fiesp, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, tinham trânsito livre no órgão repressor, com visitas sistemáticas do então presidente da Federação. E qual seria o interesse dos empresários no golpe? Marco Antonio Rocha, professor do Instituto de Economia da Unicamp, responde.

“Vamos lembrar que um dos estopins do golpe foi justamente a questão relativa ao salário mínimo e à política trabalhista do governo Jango”.

Estava em jogo também uma proposta de reforma tributária. A ideia era aumentar a cobrança de impostos sobre os mais ricos e diminuir os impostos sobre o consumo, que acaba cobrando mais de quem tem menos. A mensagem enviada ao Congresso por Jango mencionava dois projetos de reforma fiscal: um tentava combater a sonegação fiscal e o outro estabelecia novas normas para a cobrança do Imposto de Renda. O historiador Daniel Aarão, fala sobre o segundo.

“A reforma tributária queria enfatizar a tributação sobre as rendas, como é democrático. Porque o imposto de circulação de mercadorias, o milionário compra um quilo de feijão, eu compro um quilo de feijão, o miserável compra um quilo de feijão, pago o mesmo imposto. É um imposto antidemocrático. Em todos os países que almejaram conquistar e conquistaram algum nível de justiça social, é à custa do imposto sobre a renda”.

Taxação sobre a renda, inclusive, é um debate sexagenário nesse país. Debate que está no centro do combate às desigualdades e do modelo de desenvolvimento econômico que o país busca como destaca Marco Antônio Rocha:

“Em termos internacionais, o debate de desigualdade é um debate visto de forma prioritária, porque ele é entendido como algo que realmente atrapalha o crescimento econômico. Isso é uma coisa um tanto consensual. O que não é consensual é o debate sobre desenvolvimento econômico. O que eu chamo a atenção é que é muito difícil isso, que é muito difícil a gente reduzir a desigualdade se a gente não tem crescimento econômico. Porque aí a gente cai naquela velha sabedoria popular de que se a farinha é pouca, meu pirão primeiro”.

Nesse contexto de farinha pouca, o que foi vendido como um "milagre econômico", se mostrou como um momento de aprofundamento das desigualdades do país. 

Toda quinta-feira tem conteúdo novo. Ouça os episódios já publicados:

 

GOLPE DE 64: PERDAS E DANOS

Primeira temporada: Futuro interrompido

Episódio 6 - Meu pirão primeiro

TRILHA INICIAL DO PODCAST 🎶

JOÃO GOULART: Acabei de assinar,também hoje, o decreto de encampação de todas as refinarias particulares. [aplausos]. A partir desta data, trabalhadores brasileiros, a Capuava, a Ipiranga, Manguinhos, Amazônia e Destilaria Rio Grandense pertencem ao povo, porque pertencem ao patrimônio popular.

TRILHA DO PODCAST 🎶

SUMAIA VILLELA: A gente começa o episódio com esse trecho do presidente João Goulart no comício de 13 de março de 1964, anunciando a estatização de refinarias particulares.

ELIANE GONÇALVES: O destino do petróleo brasileiro era uma das grandes disputas da época. A questão era: seria reservado exclusivamente ao controle estatal e nacional, ou as empresas estrangeiras poderiam seguir explorando esse que é um dos maiores motores mundiais?

SUMAIA: As multinacionais estão, aliás, no centro de outra disputa: a reforma fiscal. Esses dois pontos, junto com uma política de valorização dos salários, eram parte de um pacote do governo para enfrentar problemas estruturais do Brasil. As reformas de base.

ELIANE: As reformas foram interditadas pelo golpe de 1964. Que colocou no lugar uma ditadura militar por 21 anos, mudando o curso do Brasil. Eu sou Eliane Gonçalves 

SUMAIA: E eu sou Sumaia Villela. Esse é o Perdas e Danos, podcast que investiga esse Brasil que seria e o que acabou sendo no lugar. Estamos no nosso sexto e penúltimo episódio da primeira temporada. Hoje é a vez de seguir o dinheiro. Vamos falar de economia.

VINHETA DO PODCAST 🎶

EFEITO SONORO DE TROPAS SE COLOCANDO A POSTOS 🎶

ELIANE:  Voltamos ao dia do comício da Central do Brasil, quando a estatização das refinarias privadas foi anunciada por Jango…

TRILHA DE NOTÍCIAS 🎶

TRECHO DE JORNAL ANTIGO: Folha de São Paulo, 14 de março de 1964.  Capuava, uma das refinarias encampadas, estava na noite de ontem guardada por soldados da Força Pública, armados de metralhadoras. A diretoria da empresa passou a noite no interior da indústria.

FIM DA TRILHA DE NOTÍCIAS 🎶

ELIANE: O decreto que Jango assinou antes de subir no palanque da Central do Brasil dava 30 dias para a Petrobrás concluir a desapropriação das empresas. Mas veio o golpe e, em outubro de 1964, o Conselho de Administração da Petrobras se posicionou contra a desapropriação. Em julho de 1965, o decreto foi revogado.

SUMAIA: Como a história é complexa, o destino de cada uma dessas refinarias foi bem diferente. Algumas acabaram mesmo sendo incorporadas à Petrobras pelos militares. Como a Capuava e a Amazônia, que foram estatizadas em 1974. 

ELIANE: A Capuava, que fica em São Paulo, segue sendo uma das 11 refinarias da estatal. Já a Amazônia, em Manaus, voltou a ser privatizada no finalzinho do governo Bolsonaro, em dezembro de 2022, e hoje a REAM fornece o diesel e o gás de cozinha mais caros do país.  

SUMAIA: Manguinhos, no Rio de Janeiro, e a Ipiranga e Rio Grandense, no Rio Grande do Sul, seguiram como empresas privadas. 

ELIANE: Esse foi um dos desfechos de uma batalha que começou décadas antes, e que fazia parte de disputas internacionais. Afinal, é petróleo, né. Ainda hoje a gente segue sendo totalmente dependente dele.

SUMAIA: Tem derivado de petróleo até na produção de remédio. Em comida. Em um monte de cosméticos. E claro, em praticamente tudo o que usamos para transporte.

ELIANE:  Bom, primeiro de tudo, foi um auê fazer jorrar o ouro negro no Brasil. Tinha bastante debate sobre laudos de técnicos estrangeiros sempre desacreditando a viabilidade da exploração por aqui.

SUMAIA: E isso, segundo jornais da época, aconteceu com a primeiríssima jazida a ser explorada comercialmente no Brasil.

GERMINO BORGES: Foi em Lobato, aqui em Salvador, em 1939. O primeiro poço de petróleo. 

ELIANE: Esse é Germino Borges, petroleiro aposentado e que foi presidente do Sindipetro, o Sindicato dos Petroleiros da Bahia, algumas décadas depois dessa história que ele está contando - e em plena ditadura militar. Ele entra aqui rapidinho pra ajudar a contar a história, e volta já, já.

GERMINO BORGES: Depois descobrimos um segundo poço, que foi o de Candeias. Esse de Lobato era uma pequena produção, que não era comercial. Mas o de Candeias, sim, foi um grande poço, começou a produzir já nessa época. E para você ter uma ideia, esse poço até hoje ainda produz. Foi privatizado agora no governo de Bolsonaro.

ELIANE: Só pra gente lembrar o quanto a palavra encampação caiu em desuso no Brasil. 

SUMAIA:  Mas lá atrás, a campanha era bem outra.

TRECHO DE PROGRAMA DA RÁDIO NACIONAL: Quando essa riqueza jacente no fundo da terra escorrer pela superfície e tornar-se a mola propulsora da economia nacional, a triste tela que hoje se oferece aos nossos olhos terá desaparecido (...) Cumpre-lhes ao mesmo tempoproduzir petróleo e preservá-lo das ambições de insaciáveis trustes estrangeiros. (...) O projeto da Petrobras foi a solução encontrada para conciliar todos esses requisitos contraditórios.

ELIANE: Esse trecho da Rádio Nacional faz referência ao lemas do Petróleo é Nosso, uma grande campanha que juntava governo e parte da sociedade em favor do monopólio brasileiro. Foi daí que nasceu a Petrobras no governo de Getúlio Vargas.

SUMAIA: Não sem resistência. Multinacionais ficaram de mãos dadas com grandes jornais privados no lema contrário ao do Petróleo é Nosso.

ELIANE: Teve até CPI que expôs o dinheiro duto das petrolíferas estrangeiras Esso e Shell para anunciar na mesma mídia que era contra o monopólio nacional. Orçamento que chegava a ser mais do que o dobro da verba do Conselho Nacional do Petróleo.

EFEITO SONORO DE CAIXA REGISTRADORA 🎶

ELIANE: Sabe que a Rádio Nacional foi um palco simbólico dessa disputa? Se de um lado a emissora tinha programas como o que a gente tocou…

VINHETA DO REPÓRTER ESSO SEGUIDA DE BARULHO DE GRILOS 🎶

ELIANE: …por outro, tinha o silêncio do Repórter Esso sobre o tema.

SUMAIA: Esso é a petroleira, mesmo. O jornal mais famoso do rádio brasileiro passava na emissora do Estado, mas era privado.

ENCERRAMENTO DE VINHETA DO REPÓRTER ESSO 🎶

ELIANE: E sabe quem atuou de forma decisiva em defesa do monopólio nacional do petróleo no Brasil? Os militares. Bem, nem todos. Uma parte. O mais famoso dessa luta era o general Horta Barbosa.

SUMAIA: Era da ala nacionalista. Do outro lado, tinha os apelidados, de forma depreciativa, de “entreguistas”. Os que defendiam a participação estrangeira na exploração de petróleo. 

ELIANE: A Cruzada Democrática era a ala militar que expressava esse campo defensor das empresas gringas. Eles disputavam, inclusive, o comando do Clube Militar, um espaço importante de articulação desse pessoal e um termômetro das disputas ideológicas dentro das Forças Armadas. Esses mesmos militares tiveram papel no golpe de 1964.

SUMAIA: Ou seja: tudo interligado.

EFEITO SONORO DE CAIR A FICHA 🎶

ELIANE:  Ah, entre os civis, sabe quem era um nome importante na defesa da exploração estrangeira do petróleo brasileiro? Roberto Campos. O avô do atual presidente do Banco Central, nomeado no governo Bolsonaro. Roberto Campos Neto.

SUMAIA: Roberto Campos também foi ministro da ditadura, justamente na área econômica.

ELIANE: Aquele anúncio de março de 64 era o desenrolar dessa história toda de campanha do Petróleo é Nosso e depois de outra mobilização pela estatização das refinarias, que ficaram de fora do monopólio até então firmado em lei no Brasil.

SUMAIA: O caso da encampação das refinarias é um exemplo claro de como havia dois projetos econômicos bem distintos em disputa. Um deles a gente já contou agora. O outro, menos explícito, é a herança direta do trabalhismo de Vargas. 

ELIANE: O anúncio da encampação foi visto como uma vitória dos sindicatos de trabalhadores. E a medida não era defendida só pelos petroleiros. 

TRILHA DE NOTÍCIAS 🎶

TRECHO DE JORNAL ANTIGO: Correio da Manhã, 18 de março de 1964. A Confederação Nacional dos Trabalhadores do Comércio enviou telegrama ao presidente da república aplaudindo o anúncio da encampação das refinarias particulares.

FIM DA TRILHA DE NOTÍCIAS 🎶

SUMAIA: Mas para ter uma ideia da força que o sindicato dos petroleiros vinha acumulando ali pelos idos de 1960, a categoria tinha acabado de eleger dois deputados. Um federal e um estadual, na Bahia. E agora a gente volta com o petroleiro Germino Borges.

GERMINO BORGES: Aqui tinha dois sindicatos de petroleiros, um que era o da refinaria de Mataripe, que era o Sindipetro, e tinha o STIEP. 

ELIANE: STIEP - Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Extração do Petróleo no Estado da Bahia.

GERMINO BORGES: O presidente do STIEP, ele foi eleito deputado estadual, e o presidente do Sindipetro Bahia, que era na época o Mário Lima, foi eleito deputado federal. Então, era uma força que o sindicato tinha. 

SUMAIA: O Sindpetro Bahia é o primeiro sindicato de petroleiros do Brasil. E Mario Lima, além de presidente, foi um dos fundadores do sindicato.

EFEITO SONORO DE MANIFESTAÇÃO 🎶

ELIANE: Mario Lima liderou a primeira greve de petroleiros do país em 1960. E o que motivou a paralisação foi descobrir que na Bahia, o salário dos funcionários da Petrobrás era menor que os de seus colegas no Rio de Janeiro e São Paulo. 

GERMINO BORGES: Era quase a metade do salário dos petroleiros de São Paulo e Rio. Os petroleiros fizeram a greve, que foi chamada ou “Equipara ou aqui para”.Ou seja, nós éramos como se fossem trabalhadores de segunda categoria dentro da Petrobras. Então, esse foi o primeiro grande enfrentamento que houve e conseguimos sair vitoriosos. 

SUMAIA: Luci Praun, socióloga e professora da Universidade Federal do Acre e da Pós Graduação da Federal do ABC explica como a greve de 1960 ajudou a criar uma identidade de categoria que fortaleceu os petroleiros. E, com isso, a luta pela encampação das refinarias privadas. 

LUCI PRAUN: Parte desse processo de luta dos petroleiros inclusive é conseguir condições de trabalho iguais para o território nacional. Então, a gente vai observar que, primeiro, há diferença salarial entre trabalhadores da Petrobras, né, os de Cubatão com salário um pouco mais alto do que aqueles que estão em Mataripe. Os que estão nas refinarias privadas, menos ainda, estão aos poucos vai se criando uma identidade de categoria que vai fazendo com que esses trabalhadores lutem não só pela equiparação de direitos entre as diferentes refinarias, mas pela encampação das refinarias privadas, tornando elas propriedade do Estado brasileiro.

ELIANE: Em outubro de 1963, os petroleiros de Mauá, em São Paulo, também entraram em greve pedindo a encampação da  Capuava, a então Refinaria União. A greve acabou 15 dias depois, quando Goulart assumiu o compromisso de estatizar a refinaria. 

SUMAIA: E claro que a encampação, a estatização, anunciada por Jango contrariava interesses. 

ELIANE: O  golpe de 64 interrompeu a “era de ouro dos petroleiros” e colocou o movimento sindical como um dos alvos prioritários da repressão. Segundo o novo regime, a Petrobrás era alvo de um processo de “comunização”. 

TRECHO DA INTERNACIONAL COMUNISTA 🎶

SUMAIA: É claro que o fantasma ia aparecer aqui também, né? E com um objetivo bem concreto: desarticular a organização dos trabalhadores. 

LUCI PRAUN: Isso feria interesses da iniciativa privada, inclusive de setores estrangeiros que atuavam no Brasil. E a gente nunca pode esquecer também que todos esses processos estão acontecendo num contexto de guerra fria, num contexto em que esse discurso busca justificar as ações de contenção da classe trabalhadora. 

ELIANE: Depois do golpe, pelo menos 516 trabalhadores foram demitidos acusados de serem subversivos ou comunistas. 

LUCI PRAUN: Quando o golpe acontece, há uma ocupação imediata das unidades da empresa, uma ocupação das forças armadas, seguidas pela intervenção nas diretorias sindicais. Destituição dos diretores a partir da intervenção, quebra da estabilidade deles, enquanto dirigentes sindicais, e demissão. Esse é o caminho que a gente observa ali nos primeiros dias, nos primeiros seis meses, e isso é muito visível. Essa movimentação ela tá documentada, né? 

SUMAIA: Mário Lima, o petroleiro eleito deputado federal,  foi tirado de cena. O mandato, que iria até 1967, foi cassado no dia 10 de abril de 1964. Ele foi preso e, depois de solto, passou a viver na clandestinidade com a esposa e cinco filhos. Wilton Valença, o petroleiro eleito deputado estadual na Bahia, foi cassado em 1966, na publicação do Ato Institucional número 2, o AI2. 

ELIANE: O desmonte da organização dos trabalhadores foi ainda mais longe. A nova gestão da Petrobrás criou uma estrutura oficial de vigilância e tortura.

LUCI PRAUN: Quando acontecem as ocupações das refinarias, existem situações em que os trabalhadores são presos, e alguns inclusive dentro de unidades da empresa, né, onde acontecem sessões de tortura.

TRILHA DO PODCAST 🎶

SUMAIA: E depois de eliminar os ditos subversivos, a Petrobrás passou a contar com uma estrutura de repressão pra chamar de sua. 

LUCI PRAUN: Que é o órgão que fica conhecido entre os trabalhadores, em DIVIM, uma divisão de informações da empresa. ela tem, em um dos documentos, um organograma que deixa muito claro a capilaridade dela com os órgãos de repressão. Ela é um órgão subordinado ao gabinete da presidência da empresa, se relaciona com todos os órgãos internos da empresa, e, por outro lado, ela tem um braço externo, que é o que se relaciona com as divisões de segurança e informação dos ministérios, e todos os outros órgãos de repressão e secretaria de segurança pública, DOPS, Departamento de Polícia Federal. Então, ela é um órgão de repressão dentro da empresa que também exerce essa atividade de vigilância fora da empresa. E isso é visível nos documentos que ela produz,  de relatos de agentes da Divin indo no entorno da moradia daquele trabalhador, buscar informação sobre eles, com informações sobre se ele viajou, onde esteve. 

ELIANE: A história sinistra, né? Mas a desarticulação da organização dos trabalhadores não foi ação isolada dos militares. Nem ficou restrita apenas à Petrobras ou a outras empresas estatais. 

AMELINHA TELES: A Fiesp apoiou o golpe, que é a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Mais do que apoiando, né, gente? Realizando. Eles realizavam como? Oferecendo o quê? A sua tecnologia, o seu dinheiro, era uma forma de realizar o golpe. 

SUMAIA: Essa é a Amelinha Teles, feminista, militante dos direitos humanos, integrante da Comissão de Familiares Mortos e Desaparecidos Políticos e pesquisadora do papel de empresas em violações de direitos na ditadura.

AMELINHA TELES: Tão comprometidos, tão envolvidos, são tão responsáveis como os militares que tiveram à frente dessa ação nefasta, que trouxe tanto atraso para o Brasil, que até hoje nós não conseguimos recuperar. É um passado que está muito presente. 

ELIANE: E ganhando o quê, Amelinha, em troca?

AMELINHA TELES: Em troca, o poder impor uma exploração sem limites. Calar a boca dos trabalhadores, impedir…a classe trabalhadora foi a maior vítima do golpe de 64, sem dúvida nenhuma, né? 

ELIANE: Antes de continuar: procuramos a Fiesp. A Federação nos respondeu uma nota sucinta, a gente vai ler na íntegra:

NOTA DA FIESP: Quanto a fatos relacionados ao período da ditadura militar, não temos qualquer informação a respeito. É importante lembrar que a atuação da Fiesp tem se pautado pela defesa da democracia e do Estado de Direito e pelo desenvolvimento do Brasil. Eventos do passado que contrariem esses princípios podem e devem ser apurados.

EFEITO SONORO DE LIVRO SENDO FOLHEADO 🎶

SUMAIA: Então vamos à apuração. Documentos mostram as relações íntimas entre empresários e militares depois do golpe, como o livro de visitas do DOPS, o Departamento de Ordem Política e Social, em São Paulo, um dos mais ativos aparelhos de tortura durante a ditadura.

ELIANE: Os livros estão no Arquivo Público de São Paulo. E só pra ter uma ideia, entre abril e setembro de 1971, o presidente da FIESP na época, Geraldo Rezende de Matos, visitou o lugar 40 vezes. Já os trabalhadores… Bom, só a justiça militar abriu mais de 300 processos, a maioria contra sindicalistas.

EFEITO DE MARTELO DO JUIZ BATENDO 🎶

SUMAIA: E sabe o que liga trabalhadores a empresários? Os salários. 

MARCO ANTONIO ROCHA: Vamos lembrar que um dos estopins do golpe foi justamente a questão relativa ao salário mínimo e à política trabalhista do governo Jango. 

ELIANE: Esse é Marco Antônio Rocha, professor do Instituto de Economia da Unicamp. 

SUMAIA: Mas antes da gente deixar ele explicar por que a política de valorização do salário mínimo animou os golpistas, vamos de contexto.

EFEITO SONORO DE REBOBINAR 🎶

ELIANE: Entre 1955 e 1962, o salário mínimo registrou o maior poder de compra da história. A gente pediu pro Dieese, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, pra atualizar o valor desse salário mínimo vitaminado. Em março de 2024, o salário de 1959, que foi o maior já registrado, seria o equivalente a R$ 3.705,52.

EFEITO SONORO DE MOEDAS CAINDO 🎶

SUMAIA: Esse foi o ápice. Mas desde 1961 o Brasil vivia em turbulência. A gente já falou sobre isso: a renúncia de Jânio Quadros, um parlamentarismo forçado e um plebiscito para trazer  o presidencialismo de volta, e um presidente boicotado pela elite econômica: João Goulart. 

ELIANE: E sabe duas crises que colocam comidinha uma na boca da outra? A crise política e a econômica. 

DOCUMENTÁRIO BRASIL ONTEM, HOJE E AMANHÃ: Foi há muito pouco tempo, apenas 11 anos. E o Brasil sofria uma de suas piores crises. Greves sobre greves.  Ameaça de guerra civil, caos quase incontrolável, deterioração econômica e financeira, indisciplina invadindo os quartéis, inflação galopante forçando para o alto praticamente a cada semana os preços de tudo. 

SUMAIA: Esse é um trecho de um filme produzido em 1975, no governo do General Ernesto Geisel, o quarto presidente da ditadura militar.  O filme inteiro é uma exaltação à ditadura e para fazer isso, carrega nas tintas para falar da crise econômica que o país enfrentava antes do golpe. 

DOCUMENTÁRIO BRASIL ONTEM, HOJE E AMANHÃ: Agitações de rua, insegurança, ameaças aos jornais, agravamento da crise econômica e financeira Já então, total descontrole inflacionário e tamanha desorganização, tamanho caos, em tudo deixava sua marca. A produção se desarticulava, faltavam gêneros de primeira necessidade. 

ELIANE: E tinha mesmo uma crise. A inflação vinha galopando fazia tempo. No governo Juscelino, que teve um crescimento do PIB expressivo, industrialização acelerada, o tal dos 50 anos em 5, a variação foi de quase 40% em 1959. 

SUMAIA: Mas foi uma onda de saques no Rio de Janeiro, em 1962, que ajuda a mostrar como era complexa a situação econômica pré-golpe.  

ELIANE: Faltavam alimentos nas prateleiras. Parte disso, porque os produtores rurais seguravam os estoques para forçar o reajuste de preços. Em 1962, quando o regime era o parlamentarismo, o então primeiro-ministro Tancredo Neves comandou a reunião com Instituto do Açúcar e Álcool e a COFAP, a Comissão Federal de Abastecimento e Preços, para que os empresários liberassem os estoques para a população. 

TRILHA DE NOTÍCIAS 🎶

TRECHO DE JORNAL ANTIGO: Jornal do Brasil, 15 de junho de 1962 -  O gabinete da Presidência da COFAP informou que ontem às primeiras horas da noite, o Banco do Brasil liberou o crédito de Cr$ 150 milhões - que podem ser sacados a partir de hoje - para a desapropriação e requisição de estoques dos gêneros alimentícios sonegados. 

SUMAIA: Mas o desabastecimento seguiu, e a carestia também. 

TRECHO DE JORNAL ANTIGO: Última Hora, 29 de junho de 1962. Preços elevam-se e gêneros desaparecem. Com o quilo do tomate a Cr$ 120, o Chuchu a Cr$ 60 e a banana a Cr$ 50 a dúzia, as donas-de-casa de Niterói tiveram seus orçamentos domésticos arrasados pela brutal elevação de preços verificada nos últimos dias, ao mesmo tempo em que os gêneros alimentícios de primeira necessidade continuam faltando. 

FIM DA TRILHA DE NOTÍCIAS 🎶

ELIANE: Pressionado, Tancredo Neves renunciou e João Goulart indicou um aliado para substituir o primeiro-ministro. San Tiago Dantas. Mas o nome foi vetado…

TRECHO DE MÚSICA “REI DO GADO” 🎶

SUMAIA: …Pelo presidente do Senado, Auro de Moura Andrade. Olha o filho do rei do gado aí de novo. 

ELIANE: Em protesto, os sindicatos convocaram uma greve geral. Nesse dia, um 5 de julho, os trabalhadores da baixada fluminense que não conseguiam chegar ao trabalho foram se aglomerando nas ruas. Até que veio o boato de que um comerciante da região estava escondendo estoques de feijão. E, assim, começou a onda de saques. 

EFEITO SONORO DE QUEBRADEIRA 🎶

TRILHA DE NOTÍCIAS 🎶

TRECHO DE JORNAL ANTIGO: Jornal do Brasil, 6 de julho de 1962. 42 pessoas morreram e 700 foram feridas em quatro municípios do estado do Rio, onde a população se revoltou e, ganhando as ruas, invadiu um a um todos os armazéns empórios e mercadinhos, num saque sistemático que causou prejuízos de Cr$ 1 bilhão. 

FIM DA TRILHA DE NOTÍCIAS 🎶

SUMAIA: Essa turbulência toda contribuiu para trazer de volta o presidencialismo e João Goulart assumiu, de fato, o governo em 1963. Mas a crise na economia seguia. 

ELIANE: A inflação chegava a 80%, e comeu parte do poder de compra dos salários. Em fevereiro de 1964, João Goulart reajustou os salários mínimos. Salários mínimos no plural mesmo. É que eles eram regionais, e não um valor para todo o país - os índices de reajuste chegavam a 100%. e ainda se discutia a unificação de um salário mínimo nacional. 

SUMAIA: Tá na hora de trazer o professor Marcos Rocha de volta para contar porque uma medida como essa, da valorização do salário mínimo, inflamou os golpistas. 

MARCO ANTONIO ROCHA: De certa forma, nessa leitura mais conservadora, o processo inflacionário tinha fontes, por exemplo, no próprio processo e no próprio projeto de desenvolvimento e a necessidade de mobilização de recursos públicos e orçamentários. E também um certo acirramento do conflito de classe que via o movimento sindical e a capacidade de demanda e de aumento salarial do movimento sindical em um governo que se apoiava cada vez mais no movimento trabalhista, como uma dessas fontes de perturbações econômicas que criavam a inflação. 

ELIANE: Inflação atrelada à mobilização de recursos públicos, a orçamento, aumento salarial… Talvez você já tenha ouvido essa associação outras vezes. Ela é muito comum no noticiário econômico. Tá em ideias como para a economia crescer é preciso cortar gastos públicos ou que pleno emprego valoriza salários e pressiona a inflação. Pois bem, agora,  adivinha o que aconteceu com o salário-mínimo depois do golpe.

EFEITO SONORO DE FACA 🎶

MARCO ANTONIO ROCHA: O que o governo fez foi modificar a política de indexação do salário mínimo frente à inflação. Com uma inflação já bem elevada, isso significou que o salário mínimo ficou muito defasado de forma muito rápida. Em papo de um, dois anos, ele perdeu cerca de 50% do poder de compra.

SUMAIA:  Mas vamos voltar a um detalhe que o Marco tinha falado aqui agora há pouco, sobre política fiscal.

ELIANE: João Goulart também tinha colocado  em marcha um projeto de reforma tributária. Esse ponto não aparece no discurso de Jango lá na Central do Brasil. Mas já vinham sendo tomadas medidas no plano trienal que a gente tratou no episódio 2. Mas algumas medidas incomodaram, como a lei de remessa de lucros para o exterior.

SUMAIA: Em 1962, o Congresso Nacional aprovou a lei que limitou a 10% a remessa de lucros para o exterior de empresas internacionais instaladas no país. 

ELIANE:  A ideia não era nova. Começou a ser discutida no governo de Getúlio Vargas, atravessou os governos de JK e Jânio Quadros, foi aprovada pelo Congresso Nacional em 1962, quando estava em vigor o parlamentarismo, e regulamentada por Jango em janeiro de 64.

SUMAIA: A lei dividiu o empresariado. De um lado, os industriais nacionalistas,como José Ermírio de Moraes Filho, do Grupo Votorantim, que viam a possibilidade de melhorar a capacidade de competir com as multinacionais. De outro, empresários que tinham vínculos com as empresas estrangeiras, inclusive parte importante da Fiesp, que ficaram contra a lei.

ELIANE: Naquela época tinham acabado de se instalar no Brasil um monte de multinacionais, embaladas pela política industrialização.

EFEITO SONORO DE CARRO DANDO A PARTIDA 🎶

SUMAIA: Só pra ter uma ideia: de cada 10 automóveis produzidos aqui, 8 eram da Ford, da Volkswagen, da General Motors e da Willys Overland. 78%, como registra Boris Fausto no seu livro História do Brasil. E isso só piorou, né.

ELIANE: Já a única indústria de automóveis brasileira, em que o Estado era o principal acionista, a Fábrica Nacional de Motores, foi absorvida pelo mercado privado durante a ditadura..

SUMAIA: E sabe também quem não gostou nada dessa ideia de limitar a remessa de lucros? Os Estados Unidos.

TRECHO DO HINO DOS ESTADOS UNIDOS 🎶

TRILHA DE NOTÍCIAS 🎶

TRECHO DE JORNAL ANTIGO: Jornal do Brasil, 27 de fevereiro de 1962. O Subcomitê de verbas do Senado dos Estados Unidos recomendou a imediata suspensão dos auxílios financeiros ao Brasil caso seja promulgada a lei de limitação da remessa de lucros para o exterior. 

FIM DA TRILHA DE NOTÍCIAS 🎶

ELIANE: E o grupo que fazia oposição a João Goulart foi ganhando cada vez mais o apoio de aliados de peso. 

DANIEL AARÃO: Esse foi um dos pontos que impulsionou a mobilização dos grandes patrões contra o João Goulart Porque ele regulamentou, em janeiro de 1964, a lei que disciplinava a remessa de lucros para o exterior.

SUMAIA: O historiador Daniel Aarão fala de uma lei que formalmente seguiu em vigor até dezembro de 2022.  Mas os artigos que colocavam limites mais duros à remessa de lucros para o exterior foram revogados logo depois do golpe de 1964.

ELIANE: No livro economia política contemporânea, o economista André Villela calculou o impacto da medida:

LEITURA DE LIVRO: Como resultado da Lei — e da própria deterioração da situação política no Brasil — o volume líquido de investimentos externos a ingressar no país caiu cerca de 40%, de uma média anual de US$ 150 milhões no período 1956 a 62, para menos de US$ 90 milhões em 1963.

SUMAIA: Estava em jogo também uma proposta de reforma tributária. A ideia era aumentar a cobrança de impostos sobre os mais ricos e diminuir os impostos sobre o consumo. Isso porque, ao taxar o consumo, se cobra mais de quem tem menos. 

ELIANE: A mensagem presidencial que foi enviada dois dias depois do comício na Central do Brasil mencionava dois projetos de reforma fiscal que já tinham sido enviados ao Congresso em 1963. Um tentava combater a sonegação fiscal e outro estabelecia novas normas para a cobrança do Imposto de Renda.

SUMAIA: O governo de Goulart aumentou a alíquota máxima do Imposto de Renda para 65%, o maior percentual da história. 

EFEITO SONORO DE LEÃO RUGINDO 🎶

ELIANE: Mas peraí, porque senão é capaz da gente causar um infarto em quem tá escutando. Vamos dar dois contextos importantes: primeiro, nessa época, em países como Estados Unidos, a alíquota máxima chegava a 90%. E não é que João Goulart passou de 10% para 65%, tá. Era 50% até 1961, depois passou para 60% com Jânio Quadros.

SUMAIA: Segundo: não era 65% do seu salário de R$ 4,6 mil, que é hoje a faixa que mais paga imposto de renda. Existiam 15 degraus na tabela do IR do governo Jango. Era 65% em cima de rendas maiores que 800 vezes o salário mínimo. Quem recebia até 24 vezes o salário mínimo era isento.

EFEITO SONORO DE CAIXA REGISTRADORA 🎶

ELIANE: Claro que a comparação não é assim tão simples, mas o principal é entender que vigorava uma outra forma de tributação sobre a renda, com o objetivo de reduzir desigualdades. Como explica é Daniel Aarão.

DANIEL AARÃO: A reforma tributária, que nos anos 60 queria enfatizar a tributação sobre as rendas, como é democrático, porque o imposto de circulação de mercadorias, o milionário compra um quilo de feijão, eu compro um quilo de feijão, o miserável compra um quilo de feijão, pago o mesmo imposto. É um imposto antidemocrático. Em todos os países que almejaram conquistar e conquistaram algum nível de justiça social, é à custa do imposto sobre a renda. 

EFEITO SONORO DE GATINHO 🎶

SUMAIA: Bom, uma das primeiras medidas da ditadura foi reduzir a mordida do Leão para no máximo 50% do rendimento.

ELIANE: E sabe outra coisa que a ditadura promoveu? Menos imposto para quem comprava ação. Entre outras particularidades que beneficiavam gente que tinha dinheiro.

SUMAIA:  Aliás, discussão parecida está sendo feita neste momento no Brasil: taxar grandes fortunas, aumentar o imposto sobre a renda, reduzir os impostos sobre o consumo… Um debate sexagenário mas que custa a amadurecer…  

DANIEL AARÃO: É uma das grandes bandeiras do movimento popular democrático. Taxar as grandes fortunas, o direito de herança. Os países nórdicos, da Europa, que tem padrão elevado de justiça social, a herança sofre uma taxa superior a 50%. Aqui no Brasil, paga-se 4, 5, 6% de taxa de herança. Os mais ricos não são tocados pelos tributos como deveriam ser.  

MARCO ANTONIO ROCHA: Acho que era o Millôr Fernandes que dizia isso, que quando as ideias ficam velhinhas, elas vêm morar no Brasil. 

ELIANE: De novo, Marco Antonio Rocha, e, sim, o Millôr dizia isso mesmo.

MARCO ANTONIO ROCHA: Em termos internacionais, o debate de desigualdade é um debate visto de forma prioritária, porque ele é entendido como algo que realmente atrapalha o crescimento econômico, a própria economia, quando a desigualdade chega em níveis brasileiros. Isso é uma coisa um tanto consensual. O que não é consensual é o debate sobre desenvolvimento econômico. O que eu chamo a atenção é que é muito difícil isso - eu acho que vale o senso comum para essa coisa -  que é muito difícil a gente reduzir a desigualdade se a gente não tem crescimento econômico, né, porque aí a gente cai naquela velha sabedoria popular de que se a farinha é pouca, meu pirão primeiro. 

SUMAIA: E sabe essa falta de consenso sobre como promover o desenvolvimento? Já deu pra perceber que ela também estava colocada lá em 1964, né? O governo defendendo aumento de salário e o empresariado preocupado com os efeitos da inflação. Ou a proposta de reforma agrária, para ampliar a oferta de alimentos ao mesmo tempo que gerava renda no campo, criando um novo mercado consumidor para movimentar a industrialização nas cidades. Mas do outro lado, o agronegócio tava de olho nas exportações… 

ELIANE: E aproveitando que o Marco Antônio falou em farinha e pirão, tá na hora lembrar da metáfora que sintetizou a política econômica da ditadura: a promessa de um bolo que ia crescer pra depois ser dividido. 

SUMAIA: A frase é atribuída a Delfim Netto, que foi ministro da Fazenda de 1967 a 1974. Mas em uma live com o historiador e youtuber Marco Antonio Villa, em 2020, ele negou a autoria. 

DELFIM NETTO: Essa é uma frase que eu suspeito tenha sido construída num momento dum debate político muito duro, por uma figura muito inteligente que depois chegou à presidência da república, que é o Fernando Henrique Cardoso. 

ELIANE: Bom…o bolo cresceu.

DOCUMENTÁRIO BRASIL ONTEM, HOJE E AMANHÃ: O nosso produto interno bruto era quase ridículo: US$ 20 bilhões. Saltamos para US$ 80 bilhões em 75.

JINGLE DO DOCUMENTÁRIO: Todos juntos vamos torcer/ vamos lutar/ para o Brasil crescer 🎶
 
SUMAIA:
Lembra do filme do governo Geisel que carregou nas tintas para falar do governo de João Goulart? A peça de propaganda também fez um compilado de indicadores econômicos da ditadura. 

DOCUMENTÁRIO BRASIL ONTEM, HOJE E AMANHÃ: A produção de aço era de 2 milhões e 800 mil toneladas Hoje, 8 milhões de toneladas anuais. // 17 mil quilômetros de estradas pavimentadas em 64. Hoje, cinco vezes mais. // 183 mil veículos produzidos. Este ano, mais de um milhão. //  E os investimentos na atividade rural irão acima de 100 bilhões de cruzeiros.

ELIANE: Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a economia brasileira vinha crescendo. Uma média de 7% ao ano. Mas em 1973, o PIB cresceu 13%. Um recorde na história brasileira.

SUMAIA: Mas sabe a história de dividir o bolo? Bom… em 2020, lá na live com Marco Antônio Villa, Delfim Netto disse que se a economia cresce, não há como o bolo não ser dividido. 

DELFIM NETTO: Se você não tiver aumento de consumo para utilizar o que está havendo como aumento de produção, as coisas não funcionam. Portanto, é impossível em que o bolo cresce e a distribuição é ruim. Isso só num regime autoritário do tipo soviético, e não do tipo que nós tínhamos.

ELIANE: Delfim foi um dos signatários do Ato Institucional número 5, o AI 5, assinado no dia 13 de dezembro de 1968. A medida escancarou o autoritarismo e praticamente oficializou a tortura contra as pessoas que se opunham ao governo. 

SUMAIA: Bom, a desigualdade social no Brasil, que nunca foi pequena, aumentou durante a ditadura militar. Em 1960, 5% dos brasileiros mais ricos concentravam 28% de toda a renda do país. Em 1972, os mais ricos estavam abocanhando quase 40%. Os números são do IBGE.  De novo, Luci Praun.

LUCI PRAUN: É no contexto da ditadura militar que o PIB brasileiro vai às alturas,  a lucratividade de um setor, um determinado segmento empresarial, atinge alto nível, em que o índice de acidentes de trabalho explode no país. Mas as pessoas não podem reclamar, porque tem uma ditadura. Então, essa é a grande diferença, e que gera vantagens muito grandes para o setor empresarial implicado nessas relações. 

ELIANE: Sabe que indicador econômico é esquecido no filme ufanista do governo Geisel? O salário mínimo. Lembra que o poder de compra dele despencou logo depois do golpe? 

SUMAIA: O salário mínimo só conseguiu recuperar o mesmo poder de compra de 1964, mais de 50 anos depois, em 2015. 

ELIANE: De novo, Marco Antônio.

MARCO ANTONIO ROCHA: Então, de certa forma, o bolo cresceu, bem solado, e criou um perfil de desenvolvimento muito marcado justamente pela opção que era justamente não dividir o bolo, apenas fazer ele crescer. 

ELIANE: Edson Telles é Professor de história da Universidade Federal de São Paulo e coordenador de um projeto grande, com participação de várias federais, que desvenda a ligação entre empresas e a ditadura e as violações de direitos cometidas nesse contexto. E ele vai mais longe na análise econômica da ditadura.

EDSON TELLES: Não houve desenvolvimento econômico no país. Isso, infelizmente, é uma narrativa ficcional que nós construímos, nós, enquanto sociedade. Houve um boom econômico que é reflexo do que a democracia estava construindo a partir dos anos 50, que é o desenvolvimento da indústria brasileira e o início da reforma agrária e a produção agrícola familiar ou de cooperativas. E isso acontece até meados dos anos 60 e é o que gera o que a ditadura oportunisticamente chamou de milagre econômico e que vai ter efeito no Brasil até o ano de 1973, 1974, quando tem a crise do petróleo. E aí acabou o milagre econômico brasileiro. 

TRILHA DO PODCAST 🎶

SUMAIA: Enquanto os salários encolhiam, um outro indicador era abafado: o de acidentes de trabalho. Uma pesquisa da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro estima que só nas empreiteiras foram 60 mil operários mortos. 

ELIANE: E se não tinha segurança para trabalhador no local de trabalho, também não havia medidas para prevenir acidentes contra quem estava do lado de fora das empresas. 

TRILHA DO PODCAST 🎶

SUMAIA: No último episódio de Futuro Interrompido a gente vai até Cubatão, o polo petroquímico instalado no meio da Serra do Mar, entre o maior porto, Santos, e o maior centro financeiro do país, São Paulo, para mostrar o projeto de desenvolvimento que foi implantado no lugar das reformas de base.

TEASER: Quando foi meia-noite, eu só escutei o pé do vizinho no barraco da minha mãe. Sai, sai, sai, Lagoa, sai, sai, Lagoa. O bairro tá pegando fogo, Lagoa. Quando meu pai… quando meu pai saiu, que veio a primeira explosão, bum, aquela labareda…  deu a terceira explosão. BUM. Eu falei, já era. Já era. 

ELIANE: Vamos falar do incêndio da Vila Socó, que vitimou milhares de pessoas que viviam na favela localizada sobre os oleodutos da Petrobrás e que das centenas de pessoas invisíveis que viraram cinzas no último ano do governo militar. 

TRILHA DOS CRÉDITOS 🎶

SUMAIA: Futuro Interrompido é a primeira temporada do podcast Perdas e Danos. Essa é uma produção original da Radioagência Nacional, veículo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

ELIANE: Na quinta-feira que vem a gente lança  o último episódio, então se você ainda não fez isso, aproveita para  salvar nosso perfil e não esquece de usar a ferramenta de avaliação da plataforma se você gostou do que ouviu até aqui. Isso ajuda a chegar em mais gente.

SUMAIA: Esse podcast é idealizado e narrado pela Eliane Gonçalves e por mim,  Sumaia Villela. A concepção de pauta da primeira temporada é minha. A Sumaia desenhou a segunda temporada.

ELIANE: A nossa dobradinha segue em todas as etapas do projeto: pesquisa histórica, produção, entrevistas, roteiro, montagem e pós-produção no geral.

SUMAIA: Contamos, ainda, com a participação de Fran de Paula. Ela também produz, entrevista, contribui com enfoques.

ELIANE: A edição, parte da montagem e divulgação nas plataformas é da Beatriz Arcoverde. 

SUMAIA: A identidade sonora do podcast e a sonoplastia do episódio é de Jailton Sodré e foi feita a partir das composições gentilmente cedidas pelo Nelson Lin, nosso colega aqui na EBC. O Nelson também interpretou os trechos da música Cartas Celestes 2, do Almeida Prado, que aparecem na abertura e aqui no encerramento.

ELIANE: Já a identidade visual e a arte são assinadas pela Caroline Ramos.

SUMAIA: A vinheta do podcast tem as vozes de Marli Arboleia e Sayonara Moreno em destaque.

ELIANE: Dilson Santa Fé fez a narração dos recortes de jornais da época. O Wagner Junior leu a nota da FIESP e o Thiago Padovan, o trecho do livro Economia Política Contemporânea.

SUMAIA: A versão do episódio em Libras, divulgada no YouTube, é feita pela equipe da EBC.

ELIANE: Nesse episódio usamos material histórico do acervo da EBC, do Arquivo Público de São Paulo e do Arquivo Nacional. Também usamos, para fins jornalísticos, um trecho da música Rei do Gado, de Tião Carreiro e Pardinho.

SUMAIA: Agradecemos a Rômulo Rodrigues, Mariana Nazareth, Aline Brettas, Thiago Guimarães, Angela Andrade e Conceição Carnevale pela ajuda com informações, pesquisa  e contextos e a  Barbara Barbosa e Maria Uenia da Silva pelo apoio na produção.

ELIANE: E principalmente obrigada a você que nos ouviu até aqui. Se puder tirar um tempinho para contar o que achou do podcast, agradecemos muito.

SUMAIA: Por favor, deixe uma mensagem em ouvidoria@ebc.com.br ou no site ebc.com.br/ouvidoria. Também dá para fazer uma manifestação em Libras para o número (61) 99862-1971

ENCERRAMENTO DA TRILHA DOS CRÉDITOS 🎶

Em breve
 

Concepção, idealização e narração

Eliane Gonçalves e Sumaia Villela
Pesquisa histórica, produção, entrevistas, roteiro, montagem e pós-produção no geral. Eliane Gonçalves e Sumaia Villela 
Produção, pesquisa, entrevistas e apoio Fran de Paula
Edição, montagem e coordenação dos processos

Beatriz Arcoverde

Identidade visual e design:

Caroline Ramos

Interpretação em Libras: Equipe EBC
Implementação na Web:

Beatriz Arcoverde

Identidade sonora e a sonoplastia Jailton Sodré
Trilhas Nelson Lin
Narrações de Recortes de Jornal  Luciano Barroso
Destaques de vozes na vinheta do podcast Marli Arboleia e Sayonara Moreno
Trilha de abertura e encerramento Nelson também interpretou os trechos da música Cartas Celestes 2, do Almeida Prado, que aparecem na abertura e aqui no encerramento. Obrigada, Nelson!
Leitura dos Jornais Dilson Santa Fé
Leitura do  trecho do livro Economia Política Contemporânea Thiago Padovan
Agradecimentos Rômulo Rodrigues,  Barbara Barbosa e Maria Uenia da Silva
   
   

 

Quer saber mais sobre o tema? Confira o Caminhos da Reportagem, produzido pela  TV Brasil e a série de reportagens e entrevistas da Agência Brasil. 

 

 

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