Diz a lenda que em noite de lua cheia o boto sai do rio, se transforma em um homem bonito e sedutor, lança seus encantos sobre uma moça da região, a engravida e depois volta pro rio.
A história é uma velha conhecida de quem mora no Norte do país. A manauara Ana Célia Costa aprendeu a lenda desde criança. E o conto virou motivo de preocupação para a família quando o corpo da menina deu os primeiros sinais de mocidade
Sonora: “Quando eu fiquei adolescente, isso era muito sério! As pessoas da minha família avisavam: quando estiver menstruada não pode ir pra passeio de barco porque o boto vai levar você. O boto pode saber e vai levar você.”
Até quem não é da região conhece bem a lenda. Há dois anos morando na zona rural de Manaus, o missionário Matheus Ferreira já ouviu muitas dessas histórias em suas peregrinações ao longo do Rio Amazonas, mas muitas delas servem para esconder algumas realidades.
Sonora: “Aqui tem muitas histórias. No passado elas eram muito mais corriqueiras, mais faladas e narradas. Eu conheço um rapaz que todo mundo fala que ele é filho do boto porque ninguém sabe quem é o pai. Eles ainda dão essa justificativa.”
A juíza macapaense Núbia Guedes também cresceu ouvindo falar sobre o boto e resolveu estudar o tema depois de perceber que, em muitos casos, a narrativa estava ligada a casos de violência.
Sonora: “A gente começa a ler e a gente começa a se deparar com o que está por trás da lenda do boto. São histórias dramáticas de violência sexual, contra crianças, meninas, geralmente cometida por pessoas da família. E por que a história do boto e até hoje é repetida? Porque, geralmente, são meninas que aparecem grávidas e que não podem revelar a identidade do pai das crianças, seja por temor, porque é de alguém próximo da família, pai, irmão ou primo. Ou não revela por vergonha também.”
A magistrada diz ainda que a história do boto não tem nenhum recorte romântico e pode ser traduzida como violência psicológica.
Sonora: “A gente vê a submissão contada de uma forma muito sutil em relação à mulher que é, na verdade, usada para atender um prazer, fruto de uma liberdade que é só do boto. Mesmo a lenda, ela não é nada romântica, ela, em si, é um retrato de uma sociedade machista, patriarcal.”
E os números não são lenda: o relógio da violência do Instituto Maria da Penha revela que a cada dois segundos uma mulher é vítima de algum tipo de violência física ou verbal.
O sistema Disque 100 registrou, nos últimos sete anos, mais de 163 mil denúncias de violência sexual contra meninas. Em toda a região Norte, foram cerca de 5,6 mil pequenas vítimas.
E em muitos casos, os algozes são os pais, padrastos, irmãos, avós, tios ou outras pessoas próximas à família.