Podcast conta histórias de acadêmicos que atuam na defesa da Amazônia

Neste segundo episódio do podcast Trilhas Amazônicas trazemos histórias invisíveis.
Escondidos sob a densa vegetação amazônica, vestígios dos povos originários que ali viveram há cerca de 13 mil anos se revelam aos poucos por meio dos conhecimentos indígenas e quilombolas, do trabalho de arqueólogos e da contribuição da tecnologia Lidar, do inglês light detection and ranging.
São três histórias de ação para a preservação. A primeira é a do arqueólogo Eduardo Goes Neves, professor e diretor do Museu de Arqueologia da Universidade de São Paulo (USP), que trabalha há mais de 30 anos na Amazônia e coordena o projeto Amazônia Revelada: Mapeando Legados Culturais. Ele trabalha com a tecnologia Lidar.
" Ela é um sensor que vai preso a um drone, ele pode estar num avião, pode estar num helicóptero e emite milhares de feixes de ondas por segundo. A maioria deles bate na copa das árvores e volta para a aeronave, né, para o sensor. Mas alguns deles penetram através da copa das árvores e permite que a gente veja a topografia do solo em áreas cobertas por floresta. Isso tem provocado uma revolução na arqueologia em vários lugares do mundo. Então, essa tecnologia tem trazido resultados muito interessantes. A gente quer usar esse tipo de tecnologia, um grupo de arqueólogas e arqueólogos trabalhando em rede com várias instituições da Amazônia e outros lugares do Brasil, para identificar sítios arqueológicos em áreas ameaçadas aqui na região amazônica."
A tecnologia tem revelado verdadeiras redes de lugarejos conectados por estradas, um urbanismo ancestral. A estimativa é de que existam mais de dez mil estruturas construídas por esses povos escondidas sob a floresta, como montículos, canais, aterros, campos drenados, campos de cultivo e estradas.
Eduardo destaca que as investigações arqueológicas derrubam a doutrina da ditadura militar, quando foi incentivada a ocupação da Amazônia brasileira por pessoas de outras regiões, de que seria uma área de “terra sem gente para gente sem terra.”
Agora, o projeto Amazônia Revelada quer inverter a lógica destrutiva, ao tornar visíveis contribuições milenares dos povos tradicionais, para valorizar e proteger sítios arqueológicos, trazer lições do passado e adicionar uma camada de proteção que permita manter a floresta viva, de pé.
Línguas indígenas
Outra história importante é a da linguista Altaci Kokama, copresidente da Força Tarefa Global para uma Década de Ação pelas Línguas Indígenas, da Unesco. Ela está atuando para que as línguas indígenas ameaçadas de extinção sejam acordadas. Passo importante para a continuidade desse saber ancestral, já que muitas línguas correm o risco de desaparecer na próxima década, por ter poucos falantes.
O Brasil tem, pelo menos, 274 línguas indígenas, faladas por 305 etnias, segundo o Censo Demográfico do IBGE de 2010. Mas a contagem varia e tem muitas formas não catalogadas, como conta Altaci:
"E mais linguistas, dependendo da corrente, também vão classificar em outro quantitativo. Arion Rodrigues, da Universidade de Brasília, o primeiro linguista a trabalhar com línguas indígenas no Brasil e fundar a linguística para as línguas indígenas, ele classificou em 180 línguas indígenas. Se você for pegar os dados do Museu Goeldi, com seus pesquisadores, o Denny Moore, por exemplo, vai datar 160, 165. Depende, porque eles dividem entre língua e dialeto, né? Então, são várias formas, dependendo da corrente, é uma classificação. Mas hoje, essas classificações não contam com as línguas indígenas assobiadas, as línguas indígenas de sinais, as línguas assopradas. Então, línguas que estão sendo acordadas hoje, né? As línguas em retomada, o Nordeste todo está em retomada de línguas. Não conta nenhum dado desses. E, nesse sentido, que o próprio movimento da Década das Línguas Indígenas, os próprios indígenas, na realidade, estão fazendo esse levantamento das línguas indígenas que tem no Brasil."
A luta de Altaci para preservar esses sistemas culturais é importante não apenas para os povos indígenas, mas para toda a humanidade.
História social da Amazônia negra
O nosso último guardião de histórias invisíveis do episódio de hoje é o antropólogo e quilombola Itamatatiua, Davi Pereira. Ou, no caso dele, uma história invisibilizada, pelo apagamento histórico da presença negra na Amazônia.
Davi tem dedicado a vida a mostrar as contribuições que as populações negras, descendentes de africanos, tem dado para a história social da Amazônia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia, da Universidade Estadual do Maranhão, Davi escolheu batalhar pelas comunidades quilombolas pela via intelectual e científica.
Uma das atuações do professor é na Corte Interamericana de Direitos Humanos, no processo de Alcântara contra o Estado brasileiro, por causa da base espacial que está no município desde 1983. Davi também use os saberes ancestrais e acadêmicos para proteger a Amazônia, de forma coletiva.
“A ciência que a gente faz, ela não tem necessidade de entrar em conflito com a natureza. Então a forma da gente fazer ciência é uma forma muito parecida com a forma de existir também, que é de compreender que não dá para sacrificar a natureza em nome do desenvolvimento tecnológico que está aí, porque, obviamente, a natureza para a gente é a tecnologia mais avançada e mais eficiente que existe.”
Só lembrando: não existe planeta B! E a COP 30, que será em novembro, em Belém, pode ser a última chance para a humanidade chegar a um acordo e parar de consumir o único planeta que temos disponível. A luta pela Amazônia, muitas vezes inglória e sempre muito difícil, vai continuar. Pelas mãos e palavras de guardiões como Eduardo, Davi e Altaci.
O podcast Trilhas Amazônicas é uma parceria entre a Agência Brasil e a Radioagência Nacional. A série abre o ano da Trigésima Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, a COP30, a ser realizada em Belém, em novembro. Serão sete episódios publicados toda sexta-feira na Radioagência Nacional e nos tocadores de áudio.
Você pode conferir, no menu abaixo, a transcrição do episódio, a tradução em Libras e ouvir o podcast no Spotify, além de checar toda a equipe que fez esse conteúdo chegar até você.
*A equipe viajou a convite da CCR, patrocinadora do TEDxAmazônia 2024.
PODCAST Trilhas Amazônicas- Episódio 2 - Histórias Invisíveis
VINHETA: Trilhas Amazônicas
SOBE SOM 🎶
RAFAEL: Olá, eu sou Rafael Cardoso, repórter da Agência Brasil. Neste segundo episódio do podcast Trilhas Amazônicas, vamos falar de projetos e pesquisas que estão desvendando históricas ocultas e buscam formas de preservar conhecimentos milenares, que podem se perder junto com a derrubada da floresta. Vem com a gente nessa jornada para descobrir o passado e entender o presente do maior bioma do Brasil, necessário para garantir o futuro da humanidade do planeta.
SOBE SOM 🎶
RAFAEL: Escondidos sob a densa vegetação amazônica, vestígios dos povos originários que viveram ali há cerca de 13 mil anos se revelam aos poucos por meio dos conhecimentos indígenas e quilombolas, do trabalho arqueológico e da contribuição da tecnologia Lidar, do inglês light detection and ranging.
EDUARDO: Essa tal dessa nova tecnologia chamada LIDAR, né? Que que faz isso, essa tecnologia? Essa imagem aqui é um exemplo que vem da área Maia, lá na Guatemala. Ela é um sensor, ele vai preso a um drone, ele pode estar num avião, pode estar num helicóptero e ele emite milhares de feixes de ondas por segundo. A maioria deles bate na copa das árvores e volta para a aeronave, né, para o sensor. Mas alguns deles penetram através da copa das árvores e permite que a gente veja a topografia do solo em áreas cobertas por floresta. Isso tem provocado uma revolução na arqueologia em vários lugares do mundo, por exemplo, na zona Maia, a gente tem essas coisas, as pirâmides que aparecem aqui, né, para fora da copa, mas tem um monte de estrutura que não é visível e que tá aparecendo agora. Então, essa tecnologia, ela tem trazido resultados muito interessantes. E o que que a gente quer fazer nesse projeto? A gente quer usar esse tipo de tecnologia, um grupo de arqueólogas e arqueólogos trabalhando em rede com várias instituições da Amazônia e outros lugares do Brasil, para identificar sítios arqueológicos em áreas ameaçadas aqui na região amazônica.
RAFAEL: Esse é o arqueólogo Eduardo Goes Neves, professor e diretor do Museu de Arqueologia da USP, a Universidade de São Paulo, que trabalha há mais de 30 anos na Amazônia e coordena o projeto Amazônia Revelada: Mapeando Legados Culturais.
EDUARDO: Eu recebi um e-mail um dia, eu acho que foi no começo de 2021, da fundação National Geographic Society, fazendo a seguinte proposta: se te oferecesse recursos para você para proteger algum lugar histórico que esteja ameaçado, algum monumento histórico, que tipo de proposta você faria, né? Eu disse a eles: "Por que a gente não trata a Amazônia como um lugar histórico que tá bastante ameaçado no presente?" Porque uma coisa que a arqueologia tem mostrado para nós nos últimos anos, um movimento que começa na antropologia social, mas depois passa para arqueologia, que passa a entender a Amazônia que a gente conhece hoje em dia como um produto da história das populações tradicionais, dos povos indígenas, mas também das populações quilombolas, ribeirinhas, beiradeiras, né, que vem ocupando a região há pelo menos 13 mil anos. E essa ideia de pensar a Amazônia como um lugar histórico, não só como patrimônio natural, mas como patrimônio biocultural, ela serviu de base para as pesquisas arqueológicas, que têm orientado nossas atividades na Amazônia nos últimos 30 anos, né?
RAFAEL: Antes do Lidar, muitas descobertas arqueológicas foram feitas em áreas com movimentação de solo e transformação da paisagem. Caso dos geoglifos encontrados no Acre.
EDUARDO: Na região do sudoeste da Amazônia brasileira, no sul do Amazonas, leste de Rondônia, na Bolívia e no Acre, por causa do desmatamento, centenas de estruturas como essas têm sido reveladas nos últimos 20 anos, eu diria. São estruturas geométricas conectadas por estradas. Tá vendo que tem uma linha reta aqui? Essa linha reta é uma estrada arqueológica. Essas áreas hoje estão cobertas por pastos e estão sendo destruídas, porque os fazendeiros dessa região do Acre, eles creem que a presença desses sítios pode atrapalhar as atividades econômicas que eles desenvolvem ali. Então a gente tem casos de destruição deliberada desses sítios, isso tá acontecendo no Acre principalmente. Esses geoglifos são estruturas quadradas, retangulares. Isso era coberto de floresta, tem pasto hoje porque foi desmatado nos últimos 40, 50 anos. Né? A gente não sabe confirmar, devia ser alguma forma de capoeira quando esses sítios foram ocupados. Alguns desses sítios são montículos, nós escavamos esse sítio aqui chamado Sol de Campinas. São vários montículos, o fazendeiro passou a máquina aqui, ele destruiu essa parte do sítio, mas são esses montículos e conectados a essas estradas. O nosso trabalho foi feito aqui, uma demanda do Ministério Público Federal, porque essa torre foi colocada nesse local ao lado dessa estrada e havia um debate se essa estrada era uma estrada antiga, indígena ou uma estrada recente. E a gente fez escavações em 2014 num sítio escola e demonstramos a partir do nosso trabalho, que essa estrada, ela tem pelo menos mil anos de idade. Então, de novo, é um contexto não só de sítios formados por montículos e aterros, mas por uma rede de caminhos e estradas, criando uma rede mesmo, né, com uma marca muito forte na paisagem.
RAFAEL: A tecnologia tem revelado verdadeiras redes de lugarejos conectados por estradas, um urbanismo ancestral. A estimativa é de que existam mais de 10 mil estruturas construídas por esses povos escondidas sob a floresta, como montículos, canais, aterros, campos drenados, campos de cultivo e estradas.
EDUARDO: A gente percebe que houve um processo de transformação de criação de paisagens por parte dos povos indígenas, formando a Amazônia que a gente conhece hoje em dia, acho que a gente pode falar em urbanismo, né? Para alguns lugares da Amazônia, há arranjos de sítios arqueológicos que a gente pode tratar como evidência de formas de urbanismo no passado. Muita diversidade cultural e eu acho que uma mensagem política importante a ideia de produção de abundância, que é um problema de olhar. Eu acho que a gente vê essa relação colonialista interna que existe aqui no Brasil com relação à Amazônia, é uma dificuldade de entender essa história de produção de abundância.
RAFAEL: Produção de abundância. A própria riqueza biológica e a composição da floresta Amazônica podem ser frutos da interferência humana.
EDUARDO: A ocupação indígena da Amazônia hoje a gente sabe que ela tem pelo menos 13 mil anos, ela é tão antiga, com exceção talvez de alguns lugares no Piauí, no Mato Grosso, outros lugares aqui na América do Sul. Que a Amazônia é um centro independente de domesticação e cultivo de plantas, várias plantas importantes cultivadas no mundo inteiro foram primeiro cultivadas aqui.
RAFAEL: Mandioca, taioba, pupunha, amendoim, tabaco, coca, cupuaçu, castanha, guaraná, abacaxi, batata doce, cacau, açaí... plantas cultivadas há milhares de anos na Amazônia e que conquistaram o mundo. E foram os habitantes do passado que criaram as condições para que esse cultivo fosse possível.
EDUARDO: Por exemplo, falando sobre as terras pretas, né? São muito conhecidas pelo interior da Amazônia. E que que são essas terras pretas? São solos escuros, muito férteis, superprodutivos, que foram produzidos pelos povos indígenas no passado. As terras pretas ali, elas têm mais ou menos 4.500 anos de idade. Mas elas ficam mais disseminadas a partir de 2.500 anos atrás. E hoje em dia as pessoas procuram esses locais para fazer, para cultivar. São solos importantes, quer dizer, a atividade indígena no passado modifica os solos, né? Uma ideia, uma profecia que se autorrealizava na arqueologia amazônica, é que os solos eram muito pobres e, portanto, ninguém vivia aqui, não dá para fazer roça, mas a gente mostra que os solos são modificados pelos povos indígenas do passado.
RAFAEL: As descobertas indicam que de oito a dez milhões de pessoas viviam em toda a região amazônica quando Cristóvão Colombo chegou às Antilhas, em 1492. Entre as descobertas, estão cerâmicas com data de 7 mil anos. Segundo o professor Eduardo, são as mais antigas das Américas.
EDUARDO: E essas cerâmicas antigas, elas são diferentes entre si. Se a gente comparar com a região andina, por exemplo, aqui da América do Sul, quando a gente pensa na arqueologia da América do Sul, a gente pensa nos Andes, né, os impérios andinos, os grandes centros de inovação cultural no passado. Mas se a gente olha pra cerâmica e pra agricultura, esses centros não estão nas terras altas, nas regiões andinas. Eles estão nas terras baixas tropicais e basicamente aqui na Amazônia. Então, essa ideia de que é o contexto tropical seria um contexto ruim para a ideia de inovação cultural, né, de criatividade, que é uma visão que é política, que sai um pouco da arqueologia e vira uma visão política, ela não tem nenhum embasamento científico, a arqueologia mostra justamente o contrário.
RAFAEL: Eduardo destaca que as investigações arqueológicas derrubam a doutrina da ditadura militar, quando foi incentivada a ocupação da Amazônia brasileira por pessoas de outras regiões do país. Para os militares, a Amazônia era uma área de “terra sem gente para gente sem terra”.
EDUARDO: Essa ideia, que é uma ideia que era política, ela tinha uma base arqueológica, né? Ela tinha uma premissa de que a Amazônia nunca foi ocupada, que ela sempre foi ocupada de maneira escassa no passado e mais do que isso, se a gente olha para a literatura arqueológica que prevalecia até a década de 90, e uma coisa interessante que aconteceu aqui no Museu Goeldi, foi esse movimento de fazer uma crítica a essa perspectiva, a ideia de que os ambientes tropicais teriam sido ambientes inóspitos, hostis, né? Pouco favoráveis à presença humana. A ideia de que tinha pouca gente vivendo, sempre teve pouca gente vivendo na Amazônia. Quando os dados que a gente tem hoje em dia, que estão abertos para discussão, mas sugerem que talvez houvesse 10 milhões de indígenas vivendo na Amazônia no final do século XV, no início da colonização europeia.
RAFAEL: Agora, o projeto Amazônia Revelada quer inverter a lógica destrutiva, ao tornar visíveis contribuições milenares dos povos tradicionais. A ideia é valorizar e proteger sítios arqueológicos, trazer lições do passado e adicionar uma camada de proteção que permita manter a floresta viva, de pé.
EDUARDO: Para nós trabalhando na Amazônia, a questão do desmatamento e da mudança climática, não adianta a gente saber tanto sobre o passado, se a gente não puder converter esse tipo de informação em algum tipo de ação política vista no presente. E é por isso que a gente pensou nesse projeto, a Amazônia Revelada. Porque não tem nenhum lugar do mundo que tem tanta gente vivendo em isolamento voluntário, populações humanas que nem nós, sem querer estabelecer contato com as sociedades ocidentais, como é o caso aqui da região amazônica. Acho que isso também traz uma outra dimensão ainda maior de responsabilidade para nós que vivemos ou trabalhamos aqui na região. E aí veio essa ideia do projeto Amazônia Revelada. Nós nos juntamos aqui, esse grupo e propusemos esse projeto Amazônia Revelada. E qual que é a ideia? É fazer sobrevoos, usar essa tecnologia, essa ferramenta superinteressante para mapear áreas ameaçadas da Amazônia brasileira. A ideia é identificar esses sítios arqueológicos, registrá-los, porque uma vez registrados no Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, essas áreas recebem uma camada adicional de proteção. No mínimo, tem que se fazer algum tipo de licenciamento antes, né, de qualquer projeto, entre várias aspas, de desenvolvimento ali. Então, a ideia é registrar sítios arqueológicos para tentar trazer uma camada adicional de proteção para áreas ameaçadas. Mas mais do que isso, a gente não quer pegar um avião e sair voando por aí, que seria mais uma vez uma forma de reproduzir práticas colonialistas científicas, né? Nós estamos tentando conversar com as populações que vivem nesses locais e consultá-las sobre o seu interesse ou não no desenvolvimento dessas atividades de sobrevoo.
RAFAEL: O arqueólogo introduz outro tema invisível. Mas que precisa ser ouvido com muita atenção.
EDUARDO: Se a gente olha para esse mapa, a gente vê que existe uma quantidade imensa de famílias de línguas diferentes faladas até hoje aqui na região amazônica. E essa história de diversificação linguística, ela se construiu ao longo, né, desses últimos milhares de anos. E o que que é interessante, ela se construiu num quadro de ausência de grandes barreiras físicas, isolando populações locais. Não tem nenhuma cordilheira no meio da Amazônia, não tem um deserto, né? A gente tem os grandes rios. Então esse processo de geração de diversidade linguística, a gente olha para isso hoje em dia, na arqueologia, como um processo que é ativo. É um processo que reflete uma maneira de estar no mundo que valoriza a diversidade.
PASSAGEM 🎶
RAFAEL: Vamos então ouvir a linguista Altaci Kokama.
ALTACI: Guardiã da Amazônia.
RAFAEL: Essa é a apresentação solene de Altaci. Agora, as credenciais acadêmicas.
ALTACI: O projeto de revitalização nossa do Brasileirinho vai para todo o Amazonas, e conforme eu vou subindo na formação, especialização e mestrado, eu vou indo, adentrando a Amazônia, tanto brasileira, peruana e colombiana, porque o meu povo está na Tríplice Fronteira, com as oficinas, com os trabalhos, com empoderamento de povos e comunidades tradicionais. Eu termino o doutorado em 2016, retorno para o estado do Amazonas. E, em 2019, eu passo desenvolvendo trabalho como gerente de educação escolar indígena, continuando com processo de documentação, oficina de língua indígena, principalmente a do meu povo. Em 2019, eu passo no concurso para a Universidade Brasília. Sou a primeira professora indígena da Universidade Brasília. Atualmente, eu estou no Ministério dos Povos Indígenas e continuo com os projetos na Amazônia, no Centro de Ciências e Saberes Tradicionais Kokama Lua Verde, piloto de revitalização de línguas.
RAFAEL: Unindo saberes tradicionais e acadêmicos, a educadora buscou ensinar também o português para os parentes. Dessa forma, eles entenderiam melhor seus direitos e poderiam lutar por eles.
ALTACI: Eu fiquei muito tempo trabalhando como professora indígena na Vila de Bethânia, comunidade da minha avó, e nesse processo, trabalhando, vendo as dificuldades de língua, porque os meus parentes Tikuna, naquele período, muitos eram monolíngues em Tikuna. Tudo isso foi me levando a buscar mais também saber lidar com essa diversidade linguística, como que eu poderia ensiná-los da melhor forma possível a entender o português para eles terem acesso aos seus direitos que eram usurpados pelos não indígenas.
RAFAEL: O Brasil tem, pelo menos, 274 línguas indígenas, faladas por 305 etnias, segundo o Censo Demográfico do IBGE de 2010. Mas a contagem varia e existem muitas formas não catalogadas.
ALTACI: Mais os linguistas, dependendo da corrente, também vão classificar em outro quantitativo. Arion Rodrigues, da Universidade de Brasília, o primeiro linguista a trabalhar com línguas indígenas no Brasil e fundar a linguística para as línguas indígenas, ele classificou em 180 línguas indígenas. Se você for pegar os dados do Museu Goeldi, com seus pesquisadores, o Denny Moore, por exemplo, vai datar 160, 165. Depende, porque eles dividem entre língua e dialeto, né? Mas essas classificações não contam com as línguas indígenas assobiadas, as línguas indígenas de sinais, as línguas assopradas. Línguas que estão sendo acordadas hoje, né? As línguas em retomada, o Nordeste todo está em retomada de línguas. Não conta nenhum dado desses. E, nesse sentido, que o próprio movimento da Década das Línguas Indígenas, os próprios indígenas, na realidade, estão fazendo esse levantamento, né, das línguas indígenas que tem no Brasil.
RAFAEL: Línguas que estão sendo acordadas. Esse é um dos trabalhos de Altaci como copresidente da Força Tarefa Global para uma Década de Ação pelas Línguas Indígenas, da Unesco. Passo importante para a continuidade desse saber ancestral, já que muitas línguas correm o risco de desaparecer na próxima década, por ter poucos falantes.
ALTACI: Cada saber que tem nas línguas indígenas tem um impacto dentro do território. E precisa se fazer esse levantamento e só quem sabe fazer isso são os próprios povos indígenas. É nesse sentido que o planeta, ele fica vivo. Sem esses saberes, nós vamos perder quanto de conhecimento e vamos estar remando, gastando horrores de dinheiro pra fora, pra vir uma tecnologia para dentro pra dar uma resposta que a gente sabe que não vai dar, porque a resposta está com quem conhece e quem vive dentro da Amazônia.
RAFAEL: A luta de Altaci para preservar esses sistemas culturais é importante não apenas para os povos indígenas, mas para toda a humanidade. Seus passos vêm de longe...
ALTACI: Tudo que existe na Amazônia tem um significado para os povos indígenas. Tem uma história, tem uma narrativa de origem e tudo mais. Essa planta, tem uma raiz que retira o mercúrio da água, é uma história da árvore protetora, na língua indígena. Se não fosse pesquisado a fundo, seria só uma árvore protetora. Quando o pesquisador viu a história, foi fazer o teste no laboratório e realmente comprovou que a raiz dessa árvore, que fica à margem do Solimões, retira o mercúrio da água. Então, um saber guardado dentro do povo está contribuindo para deixar o rio limpo. Agora, quantos saberes nós temos de histórias que estão dentro das línguas, os remédios, as curas, que é passado de geração pra geração e que não há investimento na ciência para que possa colocar também o conhecimento existente nas línguas indígenas de igual modo para ser testado. Não para ser patenteado e levado para o mercado, a venda do produto, desconsiderando o conhecimento indígena, mas de igual para igual. Então, todos esses conhecimentos que existem e tudo o que há é retirado de algum conhecimento que estão nas línguas indígenas. Só que não dão o crédito.
RAFAEL: Para que todo esse legado ancestral não se perca, a linguista pede maior atenção da sociedade e do Estado, com valorização e investimentos. É preciso reflorestar as mentes.
ALTACI: Campanhas que nós chamamos de reflorestar mentes. As alternativas que o mundo tem hoje para voltar a ser um planeta sustentável e que possa dar uma condição de vida melhor para a população. Precisa haver também uma campanha para divulgação da importância das línguas indígenas para salvar o planeta, né, para frear o aquecimento global. Isso tudo requer dinheiro, né? Tá faltando é investimento dentro da própria Amazônia. Isso eu tô falando das línguas indígenas da Amazônia, mas tem as línguas indígenas de todos os biomas. Então, se houver financiamento para o fortalecimento dessas línguas, com certeza isso vai salvar todos os biomas do Brasil e, com isso, contribuir para salvar o planeta.
RAFAEL: A guardiã Kokama alerta: salvar as línguas tradicionais da extinção, é salvar o planeta.
ALTACI: As respostas para a cura da terra, da Amazônia, está dentro dos próprios povos. A resposta está dentro da floresta. Quem são os detentores desse conhecimento? Os povos indígenas, os povos tradicionais, quem vive dentro da floresta. E ninguém vive sem uma língua, sem uma comunicação. Como que os dados apresentados ali apareceram? Apareceram porque alguém contou. A questão da medição das árvores, a localização. É quem vive na Amazônia que tem aquela vivência. Então, é a língua. Não tem como, né. Então, preservar as línguas é preservar os saberes, é preservar esses saberes que estão contribuindo para salvar a Amazônia, salvaguardar a vida do planeta, né? Ou salvar a vida do planeta.
PASSAGEM 🎶
RAFAEL: A contribuição para salvar o planeta vem dos povos tradicionais da Amazônia, para além dos indígenas.
DAVI: Eu me tenho mais como antropólogo do que historiador, na verdade, né? Toda a minha carreira tem sido no campo da antropologia. Eu graduei em história, mas eu tenho a mestrado e doutorado em antropologia. Eu sou professor do Programa de Pós-Graduação de Cartografia e Política na Amazônia. Trabalho com uma assessoria de movimento quilombola, principalmente dos movimentos de Alcântara.
RAFAEL: O nosso último guardião de histórias invisíveis do episódio de hoje é o antropólogo e quilombola Davi Pereira. Assim como Altaci, seus passos vêm de longe...
DAVI: Eu sou de uma comunidade quilombola, chamada Itamatatiua, território quilombola. Eu cresci nesse ambiente muito de influência dentro de casa, né, do processo de luta, né? O pai do meu pai foi processado por luta pela terra, eu tive um tio avô processado por luta pela terra. Eu cresci muito testemunhando nessa luta da minha comunidade pela terra, né? A comunidade se organizava para limpar os limites da terra, então é sempre muita tensão, o tempo todo, com ameaça de perder o lugar que a gente morava, né. Tanto é que até hoje a gente não tem título da terra, nosso território não é titulado, e eu cresci todo nesse ambiente, né?
RAFAEL: Davi tem dedicado a vida a mostrar as contribuições que as populações negras, descendentes de africanos, tem dado para a história social da Amazônia.
DAVI: A desvinculação do corpo negro é mais do que uma Amazônia não negra, né. É a desvinculação do corpo negro com a ideia de proteção de floresta, de proteção da biodiversidade e do próprio clima. Então, como é que 75% da população da Amazônia, dos nove estados que compõem a Amazônia Legal, é composta basicamente por 75% de pessoas pretas, que é a combinação pardo e preto. Então, é uma população negra em massa, né, 75%. Mas quando você faz aquilo que está dado na cabeça das pessoas, que não tem Amazônia negra. Então, você tem essa ideia de que a Amazônia é indígena. E aí, não é uma coisa de competição, a gente sabe todo o processo da relação que os indígenas têm com a Amazônia. Mas a minha questão é que nossos corpos, nossa ancestralidade, também está assentada na Amazônia, também está assentada na floresta a partir do processo de diáspora forçada, como consequência desse crime da escravidão, né, que nos mandou para cá, que mandou nossos antepassados para cá. E a floresta também é nosso lugar de reconexão com a nossa ancestralidade. É o lugar onde a gente achou para recuperar a nossa humanidade, para reimaginar a ideia de comunidade, a ideia de família, a própria ideia de ancestralidade. É a partir da nossa relação com a natureza que é possível a gente reconectar na diáspora com a nossa própria ancestralidade africana, né?
RAFAEL: Professor do Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia, da Universidade Estadual do Maranhão, Davi escolheu batalhar pelas comunidades quilombolas pela via intelectual e científica, utilizando os conhecimentos acadêmicos na defesa de direitos de seu povo. Um dos focos escolhidos foram os mapas.
DAVI: As pessoas não sabem o poder por trás do mapa. O mapa é o lugar onde faz a guerra. O mapa é o lugar onde a gente elimina o outro, por exemplo. A partir de um poder, por muito tempo esse mapa ficou sob o monopólio do Estado. Então, por exemplo, grupos indígenas, quilombolas, quebradeiras de corpo, eles passam a usar o mapa para usar como arma contra o próprio Estado, para requisitar o direito do Estado. Então o mapa pode ser esse lugar que tem uma força vinda da base, uma força política, que é superimportante na própria ação política do grupo. Esse poder do mapa é possível que você espacialize no mapa, não só, por exemplo, o ponto de uma cidade ou o lugar de uma fronteira, né, mas como você pode colocar emoções no mapa, você pode colocar o conflito, a dor, a alegria. Esse é um instrumento que é um instrumento poderoso.
RAFAEL: Uma das atuações do professor é na Corte Interamericana de Direitos Humanos, no processo de Alcântara contra o Estado brasileiro, por causa da base espacial que está no município desde 1983. O Davi também usa os saberes ancestrais e acadêmicos para proteger a Amazônia, de forma coletiva.
DAVI: A ciência que a gente faz, ela não tem necessidade de entrar em conflito com a natureza, entende? É uma ciência que é ancestral, e para a gente é muito complicado, porque toda vez que um pedaço da floresta se perde, ou que as vidas que vivem nessa floresta se perdem, se perde todo um conjunto epistemológico que a gente nunca mais vai poder reproduzir, nunca mais vai poder existir. Então a forma da gente fazer ciência é uma forma muito parecida com a forma de existir também. Que é de compreender que não dá para sacrificar a natureza em nome do desenvolvimento tecnológico que está aí, porque obviamente a natureza para a gente é a tecnologia mais avançada e mais eficiente que existe, então, a própria natureza já é a tecnologia, né, então o que a gente faz é entender isso e viver a partir dessa de como que a natureza nos possibilita.
RAFAEL: A forma da gente fazer ciência é uma forma muito parecida com a forma de existir... porque a natureza é a tecnologia mais avançada e mais eficiente que existe...
DAVI: Isso é tão verdade que a maioria das áreas preservadas na Amazônia são as que estão sob guarda de povos indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, e uma infinidade de outros grupos que vivem tradicionalmente, grupos amazônidas, que nem sequer são quantificados pelo Estado. Então os indígenas estão até com uma campanha aí para a COP 30, que é muito bonita, “we are the solution”, nós somos a solução. Então, eu super concordo que os grupos tradicionais da Amazônia, elas são a solução para a proteção climática, o grande problema é que essa velha forma de fazer as coisas ocidentais, ela está nos matando, e não querem ouvir, né, então, ainda que esses territórios mais preservados hoje na Amazônia são territórios que estejam sob guarda de povos e comunidades tradicionais, ninguém ouve os povos e comunidades tradicionais quando se trata da floresta, né? Então a gente tem aí um caminho, um desastre anunciado, e quem banca ainda a responsabilidade de manter as condições da vida na Terra, ainda são os povos e comunidades tradicionais através da proteção do pouco de floresta que é possível, porque a gente está numa guerra que é muito difícil, né?
RAFAEL: A sabedoria ancestral já está comprovada: não existe vida sem floresta.
DAVI: Quem tem dinheiro, quem é bilionário nesse mundo, eles estão procurando outra saída, mas a outra saída para eles significa fora da Terra, sabe. Porque eles estão procurando outros planetas para habitar numa possibilidade das condições da Terra ficar tão difícil que seja irreversível. Então, a preocupação desse pessoal não está em tentar estancar o problema agora. Eles estão tão convencidos que eles não querem estancar isso, que eles estão mobilizados em encontrar uma outra alternativa.
RAFAEL: Só lembrando: não existe planeta B! E a COP 30, que será em novembro, em Belém, pode ser a última chance para a humanidade chegar a um acordo e parar de consumir o único planeta que temos disponível.
ALTACI: A gente vai continuar lutando sempre, mas é o grito que se não for feito algo na COP realmente que venha impactar, para frear o desmatamento, para frear as invasões nas terras indígenas, que venha demarcar as terras indígenas. Políticas efetivas, de ações efetivas, lamentavelmente, todos nós vamos pagar um alto preço. Todos nós. Então a COP é decisiva para tudo o que há daqui para frente.
RAFAEL: A luta pela Amazônia, muitas vezes inglória e sempre muito difícil, vai continuar. Pelas mãos e palavras de guardiões como Eduardo, Davi e Altaci.
SOBE SOM 🎶
CRÉDITOS
O podcast Trilhas Amazônicas é uma parceria entre a Agência Brasil e a Radioagência Nacional. A série abre o ano da Trigésima Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, a COP30, a ser realizada em Belém, em novembro.
A equipe viajou a convite da CCR, patrocinadora do TEDxAmazônia 2024.
Não conseguimos recuperar o áudio do professor Eduardo Goes Neves no TEDx Amazônia, então pegamos no Youtube a apresentação que ele fez sobre o projeto Amazônia Revelada na reunião de 2024 da SBPC, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que ocorreu em julho na Universidade Federal do Pará. Você encontra mais detalhes sobre o projeto no site amazoniarevelada.com.br.
A reportagem, entrevistas e apresentação foram minhas, Rafael Cardoso.
Adaptação, roteiro, edição e montagem de Akemi Nitahara.
Coordenação de processos e supervisão de Beatriz Arcoverde, que também faz a implementação web junto com Lincoln Araújo.
Mara Régia gravou a vinheta e os títulos dos episódios.
A trilha sonora original foi composta para nós por Ricardo Vilas.
Também utilizamos a música Japurá River, de Uakti e Philip Glass.
Identidade visual da equipe de arte da EBC.
O tema do próximo episódio do Trilhas Amazônicas é a bioeconomia, com ideias para unir desenvolvimento econômico com o sócio ambiental.
SOBE SOM 🎶
Reportagem, entrevistas e apresentação |
Rafael Cardoso |
Edição, roteiro, adaptação e montagem | Akemi Nitahara |
Coordenação de processos e supervisão |
Beatriz Arcoverde |
Identidade visual e design: |
Caroline Ramos |
Interpretação em Libras: | Equipe EBC |
Implementação na Web: |
Lincoln Araújo e Beatriz Arcoverde |
Trilha sonora original | Ricardo Vilas |
Locução da vinheta e títulos dos episódios | Mara Régia |
Música Japurá River | Uakti e Philip Glass |
Youtube | Eduardo Goes Neves no TEDx Amazônia |




