Dia Mundial Humanitário: o auxílio de brasileiros em dias de dor
“ - Há uma pessoa ferida a ser resgatada”.
Não era simples. Até lá, muitos pontos de controle de grupos armados. E uma viagem difícil por estrada de terra. Era a segunda missão internacional da santista Nathália Estevam, profissional de relações internacionais, na República Centro-Africana, pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Ela era a responsável por interferir com os paramilitares para que as equipes conseguissem chegar ao local. O ferido era um rapaz de 17 anos, com um tiro no abdômen. “Voltamos muito devagar porque ele gritava de dor. Primeiro ele gritou muito. Depois, ele chorava baixinho. Depois, ficou em silêncio. Ele faleceu 10 minutos antes da gente chegar ao hospital. Isso me marcou. Era um menino. Todo trabalhador humanitário tem uma história em que chegou tarde demais”, afirma.
As marcas misturam as frustrações e as “pequenas vitórias”. Nesta quarta (19), Dia Mundial Humanitário, Nathália, há cinco anos na entidade, está na cidade de Hebron, na Cisjordânia, onde é chefe no escritório local. A data foi instituída pela ONU em 2008 para lembrar o dia do atentado ao escritório da entidade no Iraque, que vitimou, em 2003, 22 pessoas, incluindo o brasileiro Sérgio Vieira de Mello.
Em Hebron, Nathália experimenta as dificuldades de lidar com as necessidades de apoiar vítimas de conflitos em meio à pandemia do coronavírus. “As pessoas têm muitas dúvidas de como vai ser o futuro, depois que isso acabar. A gente continua trabalhando, mas mantendo a distância e os cuidados”. Ela sabe que cada dia tem a chance de auxiliar, de chegar antes. Como no Sudão do Sul, há um ano, ela chegou a um vilarejo isolado (para onde não há estrada) com veículo especial, em que caminhões não tinham como ir. O local abrigava também refugiados que chegavam a pé do Sudão.
“Era tempo de seca. As pessoas dividiram o pouco que elas tinham. No final, estavam todos comendo grama. É uma situação muito impactante. Conseguimos mobilizar que a Cruz Vermelha Internacional mandasse um avião como muitas toneladas de comida para que mantivesse aquelas pessoas até o tempo das chuvas e a próxima colheita. Tenho muito orgulho de ter participado dessa equipe. O trabalho humanitário é de pequenas vitórias. É indescritível”.
Assista a trecho de entrevista
Hoje, na Cisjordânia, ela lida com militares e civis tanto de Israel quanto da Palestina, em uma rotina diferente para verificar situações de instabilidade, e de apoio também a pessoas presas em prol dos direitos humanos. Nesses cinco anos, Nathália já perdeu colegas em ataques de grupos armados no Sudão. “É necessário humildade, empatia e sangue frio para lidar com as situações”.
Dia após dia
“- Ele morreu?”
A pergunta repetiu-se por quatro dias. Como um rito, a adolescente refugiada, de 16 anos de idade, esperava a notícia que parecia inevitável. Nem nome tinha o bebê recém-nascido, após seis meses de gestação. Com o peso de 700 gramas, a pediatra brasileira Junia Cajazeiro, em missão na cidade de Gambela, na Etiópia, sabia que a situação era difícil. A profissional estava em atuação pela entidade humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras. Ela passou aqueles dias entre manobras e procedimentos que contrariassem a lógica. Pediu esperança. Afinal, havia uma novidade: os prematuros estavam sobrevivendo pela primeira vez. Cada vitória não tem como medir o tamanho para quem atua em missões humanitárias
“Era um bebê que estava muito grave. No quinto dia, ela me perguntou: ' como ele está?' Nesse dia, meus olhos encheram de lágrimas e vi que ela acreditava. Eu falei para ela amamentar. Ela brilhou os olhos. O bebê foi para casa com ela e ganhou peso. Esses dias foram muito vitoriosos. Nesse dia, vi que valeu a pena”. Quem atua em missões humanitárias, como a belo-horizontina Junia, hoje com 33 anos de idade, sabe que nem todos os dias são de vitória. A rotina de salvar e ajudar, aliás, ficou ainda mais complexa com a pandemia do coronavírus.
A profissional que já tratou crianças com tuberculose multirresistente em Uzbequistão, por mais de um ano, outros seis meses na Etiópia, em 2018, e depois em Mossul, no Iraque, com a desnutrição dos menores e a esperança de olhar o céu azul depois que o Estado Islâmico foi derrotado. “Lembro que uma mãe yazidi tinha muito medo de levar o filho de sete meses para o hospital em Mossul. Medo do Estado Islâmico. Depois de 10 dias, falei que ela podia voltar para a cidade dele. Mas ela disse que queria continuar porque confiava na gente”, emociona-se.
Assista a trecho de entrevista:
Junia voltou do Iraque depois de adoecer com tuberculose. Após melhorar, atuou em Roraima também em prol dos refugiados, abrigados até em espaços improvisados. Em junho, foi para Manaus tratar pacientes com Covid-19 em um dos piores momentos da pandemia.“Todos esses lugares tenho histórias marcantes que me fazem lembrar por que devemos atuar em situações assim”. Hoje, Junia, mestranda em saúde pública, entende que é necessário plantar a semente da ação humanitária nos jovens profissionais de saúde. A confiança das pessoas nas missões sempre a emocionou, como nos episódios em que as mães pediam a presença da pediatra na hora do parto.
Vai nascer...
O nascimento de uma criança é um alívio para quem atua nessas missões. A chefe da delegação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no Brasil, a suíça Simone Casabianca Aeschlimann, de 40 anos, recorda que fez um parto muito especial em Darfur, no Sudão. “Fazia dois dias em que estava em trabalho de parto. Era um casal que andava pela estrada e não tinha nenhum transporte”. Mesmo não sendo médica, Simone recorda que conseguiu um cobertor e foi pedindo autorização para os colegas que a acompanhavam. “Foi um dos momentos que mais me marcaram nesses 15 anos em que trabalho na entidade”.
Ela, quando criança, ao saber de um conflito no Líbano, passou a sonhar em trabalhar em ações humanitárias. Atualmente, ela, que é mestre em negociação internacional e elaboração de políticas, lidera as equipes da entidade que atuam emergencialmente no combate ao Covid-19. Outro desafio que ela tem considerado bem-sucedido no Brasil é a Operação Acolhida, em Roraima, com integração entre entidades governamentais e ONGs. Em Boa Vista, o goiano Felipe Wunder, profissional de relações internacionais, é encarregado de uma missão emocionante: viabilizar o contato entre venezuelanos refugiados no Brasil com seus familiares no outro lado da fronteira. “Nós garantimos que eles mantenham o contato e tentamos evitar a perda. São pessoas em situação de muita vulnerabilidade”.
Trabalhar para que a vida de crianças volte ao normal foi uma missão do oficial de proteção à criança da Unicef, Augusto Souza, em uma missão no ano passado em Moçambique, após devastação provocada pelo ciclone Idai, em Maputo e Beira. Ele participou, entre outras atividades, pela reestruturação de pelo menos 170 escolas da região. “Ir à escola é uma rotina para eles. Quando tem um desastre dessa natureza, e muito violento. O trabalho é restaurar também o senso de normalidade que é tão importante para essas crianças, e também para que eles se recuperem dos traumas. É uma montagem em escolas em estruturas provisórias. A sensação de normalidade de volta à escola deve voltar com segurança e o mais rápido possível”.
Reagir à devastação do ciclone em Moçambique também foi missão do brasileiro Rafael Campos, do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (WFP). Ele está em Beira desde setembro de 2019 logo após o ciclone Idai, que praticamente destruiu a província de Sofala. “Nosso trabalho visa o combate à desnutrição e dar visibilidades às histórias. É um país que não sofre apenas com o ciclone, mas também as mudanças climáticas que afetam as rendas das famílias”. Para ele, a visita a lugares mais remotos e conversar com as pessoas é sempre muito impactante. “As histórias são assustadoras. Elas já não tinham muito. Perderam casas, ficaram dias e tiveram tudo alagado. Ficaram em cima de árvores por até cinco dias”.
Cuidados
Os profissionais de missões humanitárias precisam cuidar da saúde mental para encarar as dificuldades que aparecem na rotina. Cenários de fome e violência fazem parte da rotina. Nathalia Estevam, na Cisjordânia, faz terapia há um ano. “Procuro falar sempre com minha família e amigos”. Para a pediatra Junia Cajazeiro, não há como se blindar para essas situações. “Não faria sentido. Vivemos aquele momento também”.
Para a psicóloga Julia Bartsch, que também atua na Médicos sem Fronteiras, é fundamental garantir o suporte de apoio para as equipes. Dentre as experiências dela, uma das mais marcantes foi a presença em países africanos onde trabalhou no cuidado dos profissionais estrangeiros que lidaram com a epidemia de ebola e com sobreviventes de conflito armado. “Numa mesma história, escutamos muitas coisas trágicas. E todos precisam de um tempo para se restabelecer. A entidade sempre nos garantiu suporte psicossocial para isso. Precisamos reconhecer quais são os nossos limites. Ninguém deve ter vergonha de assumir os sentimentos. A gente não conta tudo o que vê. É uma escolha de vida”
É também uma escolha de vida para a irmã Rosa Zanchin, gaúcha missionária da congregação scalabriniana. Há 40 anos, trabalha para ajudar refugiados. Atualmente, está na cidade de Messina, no sul do país, onde apoia pessoas vindas da África e do Oriente Médio. Um dos grandes desafios dela na região é atender quem chega na Ilha de Lampedusa, no Mar Mediterrâneo. Entre as tarefas dela, está viabilizar a documentação de quem chega à Europa e precisa de alguma esperança para arrumar emprego. Essa era uma tarefa que ela já desempenhava em missões no Norte do Brasil, também com refugiados. Ela lamenta que o racismo e xenofobia são problemas que essas pessoas enfrentam. “A gente dá aulas de italiano e vai inserindo eles na realidade local”.
Vocação
Para quem sonha em fazer parte de missões humanitárias, é indispensável mais do que coragem e idealismo. Capacitação e fluência em idiomas tornam-se exigências dos processos de seleção. No Comitê Internacional da Cruz Vermelha, por exemplo, 86% dos funcionários são residentes nos próprios países em que nasceram. A entidade tem por missão levar proteção e assistência a vítimas de conflitos armados e violência. “Temos uma sede em Genebra e delegações em 102 países (com cerca de 20 mil funcionários).Para quem quer ingressar, entendo que a vontade de entregar o conhecimento e a capacidade de ajudar o próximo são fundamentais. Além disso, a pessoa deve estar preparada para as emergências e o olhar para o sofrimento do outro”, afirma Simone Casabianca. Existem ainda as entidades nacionais de Cruz Vermelha que recebem voluntários.
Na ONG Médicos sem Fronteiras , a concorrência faz com que o recrutamento envolva diferentes fases, incluindo envio de currículo em inglês e um período de espera. Um detalhe é que recebe candidaturas de profissionais de diferentes áreas da saúde, mas também de outros perfis. Em 2018, por exemplo, mais de 47 mil pessoas trabalharam em 70 países. No Unicef, presente em 190 países e 34 comitês nacionais, é possível enviar currículo para vagas disponíveis.
A ONU recebe também profissionais de diferentes áreas e exige domínio de língua estrangeira e, na maior parte das vezes, diploma universitário. “Eu queria salvar o mundo, mas ainda não consegui”, disseram entrevistados. Mas uma coisa é certa: eles garantem que nunca mais foram os mesmos.
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