Crimes de Maio causaram 564 mortes em 2006; entenda o caso
No dia 12 de maio de 2006, véspera do final de semana do Dia das Mães, presídios de São Paulo passaram a registrar dezenas de rebeliões. Um dia antes, a Secretaria de Administração Penitenciária havia decidido transferir 765 presos para a penitenciária 2 de Presidente Venceslau, unidade de segurança máxima no interior paulista.
As transferências ocorreram após escutas telefônicas terem revelado que facções criminosas planejavam rebeliões para o Dia das Mães. Entre os presos a serem transferidos estava Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, considerado o líder da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC).
Em represália às medidas, o PCC articulou rebeliões em 74 penitenciárias do estado. Na madrugada de sexta-feira, dia 12, agentes penitenciários, policiais, viaturas, delegacias de polícia, cadeias e prédios públicos passaram a ser alvo de ataques da organização criminosa em todo o estado.
Pela primeira vez, ataques do PCC deixaram as prisões e foram para as ruas, segundo Camila Nunes Dias, socióloga, professora da Universidade Federal do ABC, pesquisadora e colaboradora do NEV (Núcleo de Estudos de Violência da USP), além de autora do livro PCC - Hegemonia Nas Prisões e Monopólio da Violência. “Em 2001, quando teve a primeira megarrebelião do PCC, foi só dentro do sistema prisional. Em 2006, a grande novidade, além do aumento de unidades prisionais envolvidas, foram os ataques fora das prisões”, disse.
Razões para os ataques
A transferência dos presos não foi o único motivo para os ataques contra os agentes de segurança. Segundo o estudo São Paulo sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em maio de 2006, elaborado pela Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard e pela Justiça Global, a corrupção no sistema carcerário e nas investigações policiais e o descaso com a execução penal no Estado de São Paulo também contribuíram para os ataques.
De acordo com o estudo, a denúncia, baseada em gravações, de que um investigador de polícia aparece como principal participante do sequestro e extorsão, em 2005, do enteado do suposto líder do PCC, o Marcola, foi um estopim para os ataques. Para libertarem o enteado de Marcola, os sequestradores pediram, na época, R$ 300 mil. No dia 12 de maio de 2006, pouco antes dos ataques, Marcola esteve no Departamento de Investigações Sobre Crime Organizado (Deic) e havia falado sobre o sequestro.
“Desconsidero isso porque a própria evolução da atividade da facção naquela época já apontava para uma reação. Esses ataques não foram e não podem ser creditados a uma situação única. A ação do PCC foi uma ação de organização, de interesse, e não de vingança. Muito embora esse fato [a extorsão contra Marcola] possa ter acontecido, para quem faz uma análise mais conjuntural pode ver que não guarda uma relação direta. Na verdade, a ação do PCC foi fruto de uma decisão de enfrentar o Estado para que pudesse ter exigências atendidas”, disse o procurador de Justiça Criminal Márcio Sérgio Christino, membro do Conselho Superior do Ministério Público.
Revide
Em resposta aos ataques articulados pelo PCC, agentes do Estado e grupos de extermínio saíram as ruas para retaliação. Toques de recolher foram dados ou boatos sobre toques assustaram a população, com medo de sair às ruas. Supermercados, bares, escolas, universidades e comércio fecharam as portas. Ônibus pararam de funcionar, principalmente nas periferias da capital paulista. As ruas da maior cidade do país ficaram desertas.
Essa onda de ataques, promovida por agentes do Estado e integrantes do PCC, deixou 564 mortos e 110 feridos entre os dias 12 e 21 de maio. As mortes não ocorreram em confrontos, foram execuções.
“Não teve embate direto entre forças da polícia e o crime organizado. Foi mais uma ação oportunista e casual. E a cidade parou por medo, efetivamente, que é uma característica de uma determinada ação”, disse o procurador de Justiça Márcio Sérgio Christino.
Segundo relatório Análise dos Impactos dos Ataques do PCC em São Paulo em maio de 2006, divulgado em 2009 pelo Laboratório de Análises da Violência da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de 2009, 505 mortos foram civis e 59, eram agentes públicos. Conforme o estudo, há indícios de participação de policiais em 122 execuções. “Os Crimes de Maio foram marcados pela violência brutal do PCC, mas também foram uma demonstração do preço da corrupção, da fúria da violência policial e da falência do sistema prisional”, conclui o relatório.
“Aquela reação [dos agentes de segurança do Estado] foi a de matar, de forma indiscriminada, pessoas da periferia, para dar o seguinte recado: 'nunca mais façam isso'. Essa foi a resposta absolutamente desproporcional da Polícia Militar de São Paulo e, diferentemente das chacinas que ocorrem agora como padrão”, avalia a pesquisadora Camila Dias.
Para o procurador de Justiça, as “ações foram muito mais espontâneas do que propriamente planejadas. Era mais a oportunidade e o motivo do momento do que propriamente uma ação com aquele intuito de vou executar fulano, sicrano e beltrano. Provavelmente você não tinha esse planejamento prévio”.
Nos dois primeiros dias dos ataques, 33 agentes públicos e 51 civis morreram. Nos dias seguintes, quando ocorreu a chamada “onda de resposta”, 26 agentes públicos e 454 civis foram assassinados.
Oito em cada dez vítimas assassinadas nesses ataques eram jovens de até 35 anos. A quase totalidade era do sexo masculino (96% do total) e mais da metade eram negros e pardos. E apenas 6% das vítimas tinham algum antecedente junto à Justiça.
Relatório da Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, ligado à Secretaria Nacional de Direitos Humanos, apontou que em 60% dos casos, as vítimas foram baleadas na cabeça, indicando execução sumária, sem confrontos entre agentes e facções. Um relatório preliminar feito pela comissão ainda em 2006 apontava que 82 crimes cometidos no período eram de autoria desconhecida e apresentavam indícios de execução.
Já um relatório parcial feito pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), também em 2006, apontou que 431 vítimas tinham sido atingidas por disparos a longa distância (87,42% dos casos), 51 por disparos a curta distância e 11 por disparos encostados ao corpo. A análise também constatou que 2.359 tiros foram disparados contra 493 vítimas.
Fim dos ataques
O fim dos ataques, segundo o relatório São Paulo sob Achaque, coincide com um encontro secreto entre a cúpula do governo paulista com Marcola. Em 2015, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, Lembo negou acordo com o crime organizado, mas admitiu que o encontro de Marcola com a sua advogada, autorizada por ele, ajudou a por fim aos ataques.
“Hoje em dia, o próprio governador da época, Cláudio Lembo, admite que fez, que sugeriu acordo entre a liderança do Primeiro Comando da Capital e as forças de segurança. É fato notório que policiais, delegados, policiais militares, oficiais, foram até onde estava o Marcola, em Presidente Prudente, no CRD, e lá conversaram com ele. E logo após essa conversa, no dia seguinte, os ataques começaram a cessar e em 48 horas não havia mais nada”, disse Christino.
Para o procurador, a reunião do governo com Marcola foi temerária. “Quando você reconhece uma liderança criminosa como seu interlocutor, você dá legitimidade à essa organização como representação. Não vejo com bons olhos qualquer tipo de acordo entre o Estado e o crime organizado”, disse.
A equipe da Agência Brasil procurou Cláudio Lembo para comentar sobre a reunião com Marcola e os acontecimentos que levaram aos ataques. A assessoria de Lembo informou que ele não quer falar sobre o assunto. A reportagem também procurou a Secretaria de Administração Penitenciária para falar sobre os Crimes de Maio e as rebeliões nos presídios, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.