ONG critica abandono de ex-colônias para pessoas com hanseníase no Rio
Há quase 40 anos, a mudança no protocolo de tratamento da hanseníase livrou os pacientes da internação compulsória, que os isolava do restante da sociedade ao mantê-los em hospitais-colônia em todo o país. Mas quem viveu o período, classificado como “holocausto brasileiro”, ainda sofre as consequências. No Rio de Janeiro, a desassistência se agrava, fruto de um jogo de empurra entre o estado do Rio de Janeiro e prefeituras.
A avaliação é do vice-coordenador do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), Artur Custódio, que alerta para o abandono de duas antigas colônias no estado, o Hospital Curupaiti, na capital, atual Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária, e o Hospital Estadual Tavares Macedo, em Itaboraí, na região metropolitana.
“Essa questão [da situação] das antigas áreas é uma questão nacional, não só do Rio de Janeiro. No Rio, assume outro viés diante da crise institucional e financeira que o estado se encontra, em que a saúde está sendo abandonada. Quando isso ocorre, a primeira a perder atenção são essas regiões, mais vulneráveis, pobres, que deixam de ser olhadas”, afirmou Custódio.
No Tavares de Macedo, que já chegou a ter mais de 2 mil internos e hoje restam cerca de 160 pacientes, faltam luz e água nas casas, com frequência. “Tem dias que é intermitente. Os moradores denunciam, ligam para gente, contam que precisam fazer a nebulização e não conseguem", revela o ativista.
O fornecimento de água também não é regular. Moradores chegam a pagar uma “ajuda” para um vizinho acionar a bomba, que faz parte das instalações do hospital estadual.
“Todo mundo aqui dá R$ 20 reais para o rapaz ligar e distribuir, um dia [as casas] do lado direito, outro dia, do lado esquerdo”, disse Neidmar Costa da Silva, 60 anos, que mora na colônia desde os 14 anos. “O hospital fazia esse serviço, mas não renovou o contrato e não tem mais”, completou a moradora. Ela acompanha a deterioração da unidade que sofre ainda com atrasos no salário de médicos, cortes nos contratos de terceirizados e até de falta de insumos.
De acordo com o Morhan, o governo do Rio, por meio da direção do hospital, tenta repassar serviços ao município e livrar-se de atribuições que devem ser compartilhadas gradualmente. Segundo Custódio, o Estado tem uma “dívida social” com os antigos pacientes, que não podem ficar sem os serviços, antes totalmente oferecidos pelos hospitais-colônia.
“Pensar esses antigos hospitais só como questão da saúde está errado, tem que pensar como pequenas cidades, afinal, essa era a proposta quando pessoas foram segregadas e isoladas”, afirmou.
A regularização dos serviços dependem de obras públicas municipais e da individualização do abastecimento, com instalação de relógios, por exemplo, casa a casa, o que não é feito.
Essa é a mesma opinião da professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, a antropóloga Carly Machado, que estuda antigas colônias de hansenianos no país. “Moradores não vêem o prefeito como uma figura de referência, a cidade os rejeitou, os isolou, eles sempre resolveram tudo com o diretor do hospital. No entanto, muitos diretores não se entendem assim, se enxergam apenas como médicos cuidando de uma unidade hospitalar, sem entender a questão”.
A pesquisadora pondera que há uma sobreposição de entendimentos sobre as obrigações no local. Por causa do impasse, a coleta de lixo dos pavilhões e das vilas onde estão os antigos pacientes do Tavares de Macedo também é intermitente e o cemitério local está abandonado.
O atual prefeito da cidade, Helil Cardozo, reconhece atribuições do poder público no local, mas explica que o caixa do município foi afetado com a crise econômica. Ele prometeu regularizar os contratos com a empresa de limpeza urbana ainda em outubro e conta ter oferecido insumos para ajudar o hospital, que recusou. Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde afirma que não há desassistência e que “reúne todos esforços” para garantir atendimento.
Alimentação prejudicada
Com o corte nos repasses, a comida fornecida para os dependentes, nas enfermarias ou pavilhões do Tavares de Macedo, também piorou. “Tem dias que não dá nem para identificar o que é”, reclamou Neidmar. Ela contou que antes, as pessoas cozinhavam no refeitório, o que não acontece mais.
Nas enfermarias, onde estão cerca de 20 pacientes com sequelas, da época da colônia, a situação não é diferente. Uma cuidadora, paga pela família de uma das idosas internadas, disse que traz comida de casa para o lanche das idosas entre as refeições. “Tem dias que eu trago até biscoito para elas porque aqui não tem”, contou à Agência Brasil, pedindo para não ser identificada.
Frutas também passam ao largo e só há para aqueles que conseguem comprar. “Meu filho me ajuda”, diz Maria da Conceição dos Santos, de 80 anos, sobre comida e remédios, que ele traz de vez em quando. Conhecida como Dona Santinha, uma das moradoras mais antigas, está desde os 16 anos no Tavares. “Vim para cá porque me denunciaram, depois que minha mãe me deixou”.
Patrimônio da humanidade
Seguindo exemplo de outros países, o Brasil decidiu isolar pessoas diagnosticadas com a hanseníase, doença popularmente conhecida como lepra, na década de 1920. As colônias de pacientes cresceram, cercadas por muros de onde ninguém pode sair para nada. Com o tempo, se tornaram verdadeiras cidades dentro das cidades, com vilas de casas, comércio, templos religiosos, quadras de esporte, cemitério e até cadeia com “policiais” da comunidade.
Para preservar a memória dos hospitais-colônias e contar sobre o período que pacientes eram internados compulsoriamente, o Morhan defende que as 33 ex-colônias remanescentes espalhadas pelo país sejam declaradas patrimônio da humanidade.
“A luta internacional é pela preservação histórica desses locais, no Brasil e em outros países, que sejam até tombados porque representam uma política de exclusão que aconteceu e não deve ser repetido no caso de nenhuma outra doença”, afirmou Artur Custódio.
Antigo hospital-colônia de Itaboraí (RJ)