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Direitos Humanos

Podcast: Ep 5- Jornalistas desafiam abordagens racistas na mídia

Comunicadores negros e negras atuam por uma mídia antirracista
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Rafael Cardoso e Akemi Nitahara
04/12/2023 - 07:15
Rio de Janeiro
Brasília (DF) 01/12/2023 –  Banner Radioagencia
Arte Agência Brasil
© Arte Agência Brasil

Neste quinto e último episódio do podcast Imprensa Negra no Brasil nós vamos conhecer os princípios que constam no Manifesto da Mídia Negra Brasileira, lançado em 2019, e assinado por 32 iniciativas do gênero. Além disso abordamos um panorama da atualidade do jornalismo antirracista.

Assim, 190 anos depois do lançamento do primeiro periódico declaradamente negro, ainda faz sentido usarmos a expressão Imprensa Negra para definir alguns veículos? Para o Jonas Pinheiro, que é pesquisador na área de comunicação e cultura pela Universidade Federal da Bahia e jornalista fundador do portal Revista Alternativa, a quantidade de veículos atuais que se identificam assim, já é uma resposta.

"Algo comum na maioria desses veículos é que eles não estão contentes com a mídia hegemônica, ou grande mídia, ou meios de referência, enfim que seja. Mas, basicamente, a maioria, desde O Homem de Cor, que é considerado o primeiro Jornal da Imprensa Negra, até os veículos mais contemporâneos, como Mídia Negra, Notícia Preta, tem algo em comum, né? Que é esse lance de não se sentir representado, não se sentir contemplado, pelo menos da maneira que se deveria, pela mídia hegemônica, pela grande mídia, pela mídia Empresarial, hoje em dia. Então, assim, a importância vem muito disso, né, de narrativas de autorreferência, né. E obviamente quando você tem esse locus social, né? Você tem o esse fato de pessoas estarem contando suas próprias histórias e com a sensibilidade de determinadas perspectivas, então você vai ter um ganho e um potencial nessas narrativas. Narrativas muitas vezes negligenciadas pela grande mídia, pela mídia empresarial, que é muitas vezes racista, né? Acho que a mídia hegemônica brasileira, pelo menos e sobretudo, ela é uma mídia que é racista que hoje tem tentado repensar isso, entrar na onda mais antirracista, mas ao longo da história a mídia hegemônica a grande mídia ela é uma mídia que é racista e que contribuiu para isso que a gente tem chamado hoje em dia de racismo estrutural, né?"

São muitos os comunicadores negros que têm reivindicado cada vez mais um lugar de protagonismo e reforçado a necessidade de abordar os problemas sociais do país a partir das estruturas raciais que sustentam essas questões. A imprensa tradicional é criticada, já que, do ponto de vista do conteúdo, pessoas brancas e negras são tratadas de forma diferente nas matérias. Por isso, a diferença entre a imprensa tradicional não está na escolha dos temas e acontecimentos a serem cobertos pelos jornalistas, mas na perspectiva que se adota em relação a eles. Como destaca Thaís Bernardes, fundadora do portal Notícia Preta:

Enquanto jornal antirracista, a gente sempre vai partir da perspectiva desse grupo minorizado, não minoritário, né? Porque nós não somos minoria. Então, por exemplo, quando tem uma operação dentro de uma favela, a mídia tradicional, ela sempre vai começar da onde, ela vai falar, segundo a polícia essa operação ela foi feita para combater tal coisa, tal coisa, e tal coisa, ela vai partir sempre do lado institucional. A gente vai sempre partir do lado do morador, de quem é atingido por aquilo. Então a gente vai sempre começar, por exemplo, falando tantas crianças ficaram sem aula, tantos postos de saúde ficaram fechados em decorrência de uma operação, nã nã nã. Porque a gente tá sempre olhando quem de fato sofre com aquela ação. Então fazer um jornalismo antirracista é entender para quem a gente tá comunicando. E esse lugar, Rafael, do para quem a gente está comunicando, ele é o que define o lide. Quando eu tenho um lide que começa com a visão da polícia, a gente já sabe para quem a gente está comunicando. O que realmente importa aqui sabe? Será que de uma operação policial o que importa é falar que eles queriam pegar toneladas de drogas ou o que importa é esse olhar humanizado da gente saber quantas pessoas foram impactadas com aquilo."

Movimentos recentes passam a impressão de que mais empresas de comunicação têm se preocupado em responder às demandas sociais por maior diversidade racial em seus quadros. Seja por meio de processos seletivos para a contratação de pessoas negras ou, no caso de meios que trabalham com vídeo, colocar mais rostos negros nas telas. Jonas Pinheiro, da Revista Afirmativa, notou algum avanço:

"Enfim, acho que isso tem mudado, isso se dá muito pela lei de cotas e eu acho que tende a mudar, né. É importante que se mude porque não tem cabimento num país com quase 56% da população negra, que as redações sejam majoritariamente brancas, né? Pra além dos jornalistas em si, é, os editores, os chefes, a gente sabe que há tanta dificuldade porque, enfim, a mídia empresarial ela é formada por aqueles velhos conluios e consórcios, né. Então, é um caminho árduo até lá."

E confira os episódios  anteriores, nos três primeiros relembramos algumas publicações marcantes na história do movimento negro brasileiro e no quarto mostramos uma iniciativa inovadora de audiovisual quilombola.

Você pode conferir, no menu abaixo, a transcrição do episódio, a tradução em Libras e ouvir os episódios do podcast no Spotify, além de checar toda a equipe que fez esse conteúdo chegar até você.

EPISÓDIO 5

VINHETA: IMPRENSA NEGRA NO BRASIL

Sobe som 🎶 

Felipe Rangel: 1. Garantir o Direito à Comunicação da maior parte da população brasileira, composta em 54% de autodeclarades negres.

2. Produzir narrativas alternativas, ou de enfrentamento direto, as lógicas racistas e sexistas da mídia hegemônica brasileira.

3. Fazer frente às diversas formas de Genocídio da População Negra, com discursos em defesa das #VidasNegras – banalizadas e descartadas pelas estruturas do Estado e da sociedade, sob legitimidade da mídia hegemônica.

4. Reverberar narrativas de felicidade e bem viver protagonizadas por pessoas negras, bem como, priorizar o bem-estar, a saúde e a qualidade de vida em nossas políticas editoriais, e em nossas atuações políticas-profissionais;

5. Refletir e questionar todas as lógicas opressoras de poder na sociedade que agregadas ao racismo potencializam nossas vulnerabilidades, tais como o sexismo, a cis-hetero-normatividade, desigualdade de classe e as geopolíticas de poder.

Sobe som 🎶

Rafael: Esses são os princípios que constam no Manifesto da Mídia Negra Brasileira: Ninguém mais vai calar o grito por liberdade. O documento foi lançado após o Seminário Genocídios Contemporâneos: Reagir é preciso, que ocorreu em Belo Horizonte em 2019.

Sobe som 🎶

Rafael: Eu sou Rafael Cardoso e este é o último episódio do podcast Imprensa Negra no Brasil, que marca os 190 anos do jornal O Mulato ou O Homem de Cor. Nos três primeiros episódios, relembramos algumas publicações marcantes na história do movimento negro brasileiro e no quarto mostramos uma iniciativa inovadora de audiovisual quilombola. Neste, vamos trazer um panorama da atualidade no jornalismo antirracista.

Sobe som 🎶

Akemi: Episódio 5 - Jornalistas negras e negros desafiam abordagens racistas da mídia tradicional

Sobe som 🎶

Rafael: O Manifesto da Mídia Negra Brasileira foi assinado por 32 iniciativas do gênero e consta no Mapeamento da Mídia Negra, lançado em 2020 pelo Fórum Permanente Pela Igualdade Racial, o FOPIR.

Júlio: A gente estava fazendo um esforço, né? De tentar mapear esses atores da imprensa negra. Justamente a gente estava identificando que havia um movimento, né, de crescimento da mídia negra. Mas o que eu acho interessante nessa discussão é que cada pessoa com um celular na mão é um potencial comunicador, né? E quando você pega essa juventude, né? Que tem uma facilidade de comunicação, de edição e tudo mais, e eles têm é um celular que pode ser usado como um instrumento de denúncia, e em último caso de proteção, né? Quando essa proteção ela não vem do Estado, ela não vem em outras instâncias, eu acho bastante interessante é esse movimento.

Sobe som 🎶

Rafael: O Júlio Menezes Silva é pesquisador do Ipeafro e também integra o FOPIR. Ele foi um dos organizadores do Mapeamento da Mídia Negra e cita o trabalho de comunicadores comunitários e populares, que atuam dentro dos territórios mostrando o dia a dia das comunidades, denunciando abusos e violações de direitos sofridas e que acabam sendo referência para quem está fora dessa realidade.

Júlio: Tem assim esforço de comunicação que realmente atinge não só o território, mas extrapola, por exemplo, para pessoas que estão fora do território como no meu caso, né? E a gente usa esse veículo como uma fonte de referência para que a gente possa entender o que se passa dentro do território e alinhar as nossas lutas, né? De quem tá dentro e fora dos territórios marginalizados, no sentido da gente desenvolver uma pauta única, né? De defesa da vida do negro, né? Porque, afinal das contas, a gente tá falando de um país que tem uma pessoa negra morta a cada 23 minutos e isso é uma estatística, né? Então, assim, a gente tá falando aqui há 23 minutos tá um morrendo um violentamente. Isso é gravíssimo e a gente simplesmente cai no cotidiano do brasileiro, isso entrou na estatística, isso acontece, diariamente e muito pouco se fala disso, né? Você não vê a grande imprensa bater, isso é um escândalo, né?

Sobe som 🎶

Rafael: Uma forma de dar resposta a essa tragédia diária, é produzindo arte e comunicação, no que Abdias Nascimento chamou de “quilombismo”.

Som de tintilar de sinos 🎶

Akemi: Lembram do Abdias, né? Um dos maiores intelectuais do Brasil no século 20, criador do Teatro Experimental do Negro e do jornal Quilombo, na década de 1940. Falamos dele no segundo episódio desse podcast. Se ainda não ouviu, volta lá que vale a pena conhecer o Abdias. O Ipeafro, instituto criado por ele, explica que o “quilombismo” propõe uma mobilização política da população afrodescendente nas Américas, com base na história de resistência dos quilombos contra a opressão e o colonialismo, para combater o racismo e o supremacismo branco. O quilombismo se manifesta na forma de associações como escolas de samba, terreiros religiosos e também, claro, coletivos de comunicação.

Sobe som 🎶

Rafael: Relembrando a história, que contamos no primeiro episódio, durante o século 19, uma parte da população negra entendeu que a imprensa poderia ser uma ferramenta de luta contra a discriminação racial. Foram criados canais específicos para comunicar lutas e demandas da época, que continuaram no século 20.

Som de tintilar de sinos 🎶

Akemi: Alguns títulos ao longo da história. Em São Paulo, entre 1946 e 1960 foram lançadas sete publicações: os jornais O Novo Horizonte; Mundo Novo; Nosso Jornal; Notícias de Ébano; e O Mutirão. E ainda as revistas Senzala e Níger. No Rio de Janeiro foram dois periódicos, Quilombo, em 1948; e A Voz da Negritude, em 1953. Nos anos 70 tivemos Tição, Objetivo, Jornegro, Negrice, O Saci, Vissungo e Pixaim. Em 1984 foi publicado Voz do Negro e em 1985 Elêmi. Dez anos depois, em 1995 foi lançado o periódico Áfricas Gerais, e em 1996 Irohin e a Revista Raça.

Sobe som 🎶

Rafael: Mas 190 anos depois do lançamento do primeiro periódico declaradamente negro, ainda faz sentido usarmos a expressão Imprensa Negra para definir alguns veículos? Para o Jonas Pinheiro, que é pesquisador na área de comunicação e cultura pela Universidade Federal da Bahia e jornalista fundador do portal Revista Alternativa, a quantidade de veículos atuais que se identificam assim, já é uma resposta.

Jonas: Algo comum na maioria desses veículos é que eles não estão contentes com a mídia hegemônica, ou grande mídia, ou meios de referência, enfim que seja. Mas, basicamente, a maioria, desde O Homem de Cor, que é considerado o primeiro Jornal da Imprensa Negra, até os veículos mais contemporâneos, como Mídia Negra, Notícia Preta, tem algo em comum, né? Que é esse lance de não se sentir representado, não se sentir contemplado, pelo menos da maneira que se deveria, pela mídia hegemônica, pela grande mídia, pela mídia Empresarial, hoje em dia. Então, assim, a importância vem muito disso, né, de narrativas de autorreferência, né. E obviamente quando você tem esse locus social, né? Você tem o esse fato de pessoas estarem contando suas próprias histórias e com a sensibilidade de determinadas perspectivas, então você vai ter um ganho e um potencial nessas narrativas. Narrativas muitas vezes negligenciadas pela grande mídia, pela mídia empresarial, que é muitas vezes racista, né? Acho que a mídia hegemônica brasileira, pelo menos e sobretudo, ela é uma mídia que é racista que hoje tem tentado repensar isso, entrar na onda mais antirracista, mas ao longo da história a mídia hegemônica a grande mídia ela é uma mídia que é racista e que contribuiu para isso que a gente tem chamado hoje em dia de racismo estrutural, né?

Som de tintilar de sinos 🎶

Akemi: Racismo estrutural é um termo desenvolvido pelo professor e advogado Silvio Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos e Cidadania. Se trata do racismo presente na própria estrutura social, resultado do funcionamento habitual da sociedade, que é uma "máquina produtora de desigualdade racial", nas palavras do professor. Ou seja, se nada for feito para mudar essa estrutura, como as ações afirmativas, a sociedade vai continuar racista.

Rafael: Exemplos da imprensa negra no século 21 não faltam, como o Portal Geledés, o História Preta, o Afropress, o Atlântico Negro, o Nossos passos vêm de longe e a Cultne TV.

Rafael: São muitos os comunicadores negros que têm reivindicado cada vez mais um lugar de protagonismo e reforçado a necessidade de abordar os problemas sociais do país a partir das estruturas RACIAIS que sustentam essas questões. A imprensa tradicional é criticada, já que, do ponto de vista do conteúdo, pessoas brancas e negras são tratadas de forma diferente nas matérias.

Sobe som 🎶

Thaís: Qualquer jornalista pode e deve ser um jornalista antirracista. O jornalismo antirracista é aquele que ele não propaga uma visão estereotipada das pessoas negras e das pessoas indígenas. E a gente não reproduz o preconceito, porque o jornalismo é uma ferramenta educacional também. Então quando você tem um jornal que não parte desse ponto de vista que não parte desse lugar e que não entende as matérias a partir deste lugar, a chance de você reproduzir estereótipos e preconceito ela é gigante. Isso passa pela semiótica, né, das matérias que a gente vê “traficante é preso com 10 Kg de cocaína” ou “estudante de medicina é preso com 10 Kg de cocaína”, a gente sabe exatamente quem é a pessoa negra e quem é a pessoa é branca em cada caso. Então esse é o jornalismo antirracista, é um jornalismo que a gente não reproduz estereótipos que estigmatizam e perpetuam o racismo.

Sobe som 🎶

Rafael: Essa é a Thaís Bernardes, fundadora do portal Notícia Preta, criado em 2018, quando ela decidiu investir em um projeto editorial de combate às desigualdades depois de trabalhar em veículos da mídia tradicional.

Rafael: Mas... existem diferenças bem demarcadas entre a imprensa negra e as mídias tidas como tradicionais ou mais generalistas? Vamos ouvir o Pedro Borges, fundador e diretor do Alma Preta, portal que surgiu em 2015 a partir de um coletivo de estudantes negros da Universidade Estadual Paulista, a Unesp. Para ele, a discussão parte dos próprios princípios de segmentação e universalidade.

Pedro: Porque não imaginar que esses grandes canais de comunicação, que privilegiam um diálogo com uma classe média e com uma elite branca não são segmentados? São segmentados também, é óbvio, tem uma capacidade de circulação gigantesca. Então, dialogam com todo mundo. Mas também quem disse que o Alma Preta também só dialoga com a população negra? A gente também tem os nossos indicadores nas pesquisas que a gente fez, tem pessoas brancas, de classe média também que nos leem, né? Veja, a gente parte do princípio de que não existe uma parcialidade, neutralidade no jornalismo. O jornalismo tem um posicionamento né? O que existe para nós e o que é caríssimo é a objetividade. Jornalismo é uma técnica, a gente é uma ciência social aplicada, a gente tem que ter um compromisso técnico e objetivo com aquilo que a gente faz. Mas a gente tem um posicionamento, a gente fala de um lugar, né? Por que que o lugar da Alma preta é um lugar ativista, nichado e o lugar de determinado canal é um lugar universal e profissional, sendo que a gente utiliza as mesmas técnicas jornalísticas que esses outros colegas de profissão. Esse sujeito branco, masculino, ele se vê no lugar da universalidade e qualquer um outro é um sujeito racializado, que tem um lugar determinado.

Sobe som 🎶

Rafael: A diferença, nesse sentido, não estaria na escolha dos temas e acontecimentos a serem cobertos pelos jornalistas, mas na perspectiva que se adota em relação a eles. Pedro enfatiza que o Alma Preta tem um olhar de destaque para grupos de periferias e o desejo de comunicar para transformar a realidade.

Sobe som 🎶

Pedro: Eu acho que hoje, é, imprensa da mídia negra, assim como as pessoas têm reivindicado no seu cotidiano, têm reivindicado um lugar de universalidade. A nossa cobertura ela tá longe de ser uma cobertura recortada em casos de discriminação racial. A gente faz uma cobertura de agendas que são centrais do Brasil. Então, a gente cobre muito segurança pública, que é algo que diz respeito a todos os brasileiros, política, política internacional, são temos que a gente tem feito coberturas. É pouco entender quem se propõe a fazer esse tipo de cobertura, como algo completamente nichado. É uma imprensa que tem se reivindicado enquanto completa, enquanto universal, e tem proposto uma cobertura nesse sentido. Se o racismo é um elemento que estrutura a sociedade brasileira, você dá uma abertura, pra que a população negra, para que o jornalista negro e que a imprensa Negra faça uma cobertura de toda a realidade brasileira, né? Se o racismo é pano de fundo de todos os problemas no Brasil, há uma oportunidade da imprensa negra cobrir todos os problemas do Brasil. Afinal, a desigualdade de moradia no Brasil, a desigualdade habitacional, a desigualdade alimentar a desigualdade educacional, a desigualdade ambiental, a desigualdade na saúde, na segurança pública, ela tem como pano de fundo a desigualdade racial. Então, a imprensa Negra pode atuar em todos esses segmentos, né?

Sobe som 🎶

Rafael: Para Thaís, outra questão que diferencia a mídia negra e antirracista é o ponto de vista da notícia.

Thaís: Enquanto jornal antirracista, a gente sempre vai partir da perspectiva desse grupo minorizado, não minoritário, né? Porque nós não somos minoria. Então, por exemplo, quando tem uma operação dentro de uma favela, a mídia tradicional, ela sempre vai começar da onde, ela vai falar, segundo a polícia essa operação ela foi feita para combater tal coisa, tal coisa, e tal coisa, ela vai partir sempre do lado institucional. A gente vai sempre partir do lado do morador, de quem é atingido por aquilo. Então a gente vai sempre começar, por exemplo, falando tantas crianças ficaram sem aula, tantos postos de saúde ficaram fechados em decorrência de uma operação, nã nã nã. Porque a gente tá sempre olhando quem de fato sofre com aquela ação. Então fazer um jornalismo antirracista é entender para quem a gente tá comunicando. E esse lugar, Rafael, do para quem a gente está comunicando, ele é o que define o lide. Quando eu tenho um lide que começa com a visão da polícia, a gente já sabe para quem a gente está comunicando. O que realmente importa aqui sabe? Será que de uma operação policial o que importa é falar que eles queriam pegar toneladas de drogas ou o que importa é esse olhar humanizado da gente saber quantas pessoas foram impactadas com aquilo.

Som de tintilar de sinos 🎶

Akemi: O lide, na linguagem jornalística, é a primeira parte da notícia, que traz, no jornalismo atual, as informações básicas sobre o fato, explicando de forma resumida quem fez o quê onde, como e por quê.

Sobe som 🎶

Rafael: Para Thais Bernardes, a mídia tradicional sempre esteve alinhada aos interesses de uma elite política e econômica branca. Por isso, reforça e dissemina o racismo ao cobrir os fatos do dia a dia, principalmente quando sujeitos negros estão no foco da notícia.

Thaís: Uma comunicação antirracista, ela é uma comunicação não-violenta, porque, Rafael, historicamente, já que você está falando de história, historicamente onde é que estava o negro no jornal do século 19, nessa mídia chamada tradicional? Ele tava no lugar do procura-se negro fujão, vende-se uma escrava. Hoje esse lugar ele tem outro nome, que é uma editoria chamada Geral. Então, será que em dois séculos o que mudou dos nossos corpos vendidos lá no início do século 19 e dos nossos corpos desumanizados nos anos 2000, sempre ao longo da história. Onde que a gente tá? Essa editoria geral, se você abrir, é isso assim, as pessoas negras, elas estão ali como pessoas à margem da sociedade. A gente tem capa nos anos 2000 de pessoas negras amarrada em poste. Então, o que que a gente mudou, né? Será que a gente saiu do procura-se negro fujão para editoria geral? Foi só isso? Ou a geral é uma continuação dos anúncios de procura-se negro fujão?

Sobe som 🎶

Rafael: Movimentos recentes passam a impressão de que mais empresas de comunicação têm se preocupado em responder às demandas sociais por maior diversidade racial em seus quadros. Seja por meio de processos seletivos para a contratação de pessoas negras ou, no caso de meios que trabalham com vídeo, colocar mais rostos negros nas telas. Jonas Pinheiro, da Revista Afirmativa, notou algum avanço.

Jonas: Acho que tem mudado um pouco a cara, apesar de que a gente queira muito mais que uma Maju apresentando um jornal, a gente quer mais profissionais negros inclusive nos cargos de direção e tudo mais. Mas é isso, eu acho que o mercado de trabalho ele ainda é racista, apesar de como eu disse, a gente vive essa onda de mais inclusão, isso tem alterado bastante. Pra você ter uma ideia, quando eu me formei, que foi em 2014, mesmo formado numa universidade federal, eu não consegui emprego nos principais veículos de comunicação aqui do estado né, eu sou da Bahia. Minha principal e maior experiência é a Afirmativa, que começou como um trabalho de militância, o resto era freela, e tal, trabalhei como auxiliar administrativo, dentre outras coisas. Mas eu acho que ainda há essa perspectiva de maior parte das redações brancas e tal. Enfim, acho que isso tem mudado, isso se dá muito pela lei de cotas e eu acho que tende a mudar, né. É importante que se mude porque não tem cabimento num país com quase 56% da população negra, que as redações sejam majoritariamente brancas, né? Pra além dos jornalistas em si, é, os editores, os chefes, a gente sabe que há tanta dificuldade porque, enfim, a mídia empresarial ela é formada por aqueles velhos conluios e consórcios, né. Então, é um caminho árduo até lá.

Sobe som 🎶

Rafael: Para Thaís, essas ações na tentativa de garantir alguma representatividade ainda são insuficientes.

Thaís: Eu não quero representatividade, não quero. Eu quero equidade. Porque a representatividade significa você ter uma pessoa ali e acabou, todo o grupo está representado? Mas será que aquela pessoa tem realmente um lugar de poder e de tomada de decisão, será que os diretores, os editores, eles são essas pessoas negras e indígenas? Ou será que essas pessoas negras e indígenas são as pessoas que estão na reportagem, na frente da televisão ou escrevendo texto? O que que a gente muda na estrutura? A gente tensiona a estrutura? Ou a gente rasga a estrutura? Ou a gente de fato quebra a estrutura? Esse é o meu questionamento, assim, porque pessoas negras que fazem jornalismo isso sempre existiu. Então quando eu tenho uma redação onde o lugar de tomada de decisão e o lugar de poder não é um lugar dessas pessoas minorizadas historicamente, será que realmente a gente está tendo um avanço ou a gente só está tendo uma representatividade? Qual é esse lugar que a gente está? Eu acho que a gente está no lugar do tensionamento e da representatividade, e eu espero que esse lugar mude rapidamente para um lugar de equidade e de fato de mudança de estrutura. Porque enquanto isso não acontecer a gente tem aí a síndrome do preto único, muitas vezes que você tem uma apresentadora negra, aí você fala, olha ali, nós somos diversos tem uma apresentadora negra, olha ali, nós somos diversos, nós somos diversos, tem uma pessoa negra aqui, tem uma pessoa trans, tem uma, tem uma, tem uma PCD tem uma, tem uma. Então assim, eu não sei se é suficiente.

Sobe som 🎶

Rafael: Pedro destaca que veículos de imprensa voltados para a produção de conteúdos antirracistas acabam sendo espaços mais receptivos para os profissionais negros, permitindo que eles ocupem outras posições para além da subalternidade e desse lugar da representatividade na tela do qual falou a Thaís.

Pedro: Isso mostra a necessidade objetiva cotidiana brasileira que é imposta à população negra de se organizar de alguma maneira para ter um espaço de falar e ser ouvida, né? Até os dias de hoje a gente pode pegar as últimas pesquisas recentes que o Gemaa, o instituto lá do Rio de Janeiro fez, com o perfil das redações brasileiras dos principais jornais e a gente vai ver algo que, não é nenhuma novidade, mas acho que choca por conta do momento que a gente vive no Brasil, da gigantesca discrepância racial nas redações brasileiras. A gente ainda tem uma imprensa brasileira que no seu corpo geral ela é completamente branca e na sua direção, raro pensar numa imprensa que não seja. Eu penso aqui de cabeça algumas raras exceções de mídias independentes, grandes jornais, grandes canais de comunicação do Brasil, em que a liderança desse jornal seja feita por uma pessoa negra. Os únicos locais onde isso acontece com mais frequências são nesses canais de mídia negra, né?

Som de tintilar de sinos 🎶

Akemi: O Gemaa é o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, criado em 2008 dentro do IESP UERJ, o Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O último levantamento “Raça, gênero e imprensa: quem escreve nos principais jornais do Brasil?”, foi lançado pelo grupo em maio de 2023, com dados de 2021 dos jornais Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo. O resultado mostra que 84,4% dos jornalistas desses veículos são brancos, 6,1% são pardos, 3,4% pretos, 1,8% amarelos e 0,1% são indígenas. Ou seja, proporções muito longe de representar a população brasileira, onde os negros são 55,9% das pessoas, de acordo a com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE.

Sobe som 🎶

Rafael: Para Jonas Pinheiro, outro problema quando se fala em mídia e raça no Brasil, é a falta de conhecimento a respeito, já que o tema não é ensinado nas faculdades de comunicação.

Jonas: Era um certo incômodo que eu tinha na universidade, na academia, por desconhecer a história da Imprensa Negra e não ser trazido dentro dos estudos, né, da graduação, de jornalismo, de comunicação, sendo que é uma vasta história. Então, assim, o que me motiva muito a estudar mídias negras, imprensa negra, é justamente estudar essa história esquecida entre aspas, né, que é negligenciada na maioria dos cursos de comunicação do país, mas que tem robusta materialidade, por assim dizer, em toda a história do Brasil, né?

Sobe som 🎶

Rafael: Mas algumas iniciativas buscam mudar esse panorama. Em agosto de 2023, o Alma Preta lançou um Manual de Redação Antirracista. Ele traz um conjunto de princípios que devem nortear o trabalho jornalístico, a partir das experiências editoriais do portal. A ideia é que ele sirva de reflexão para comunicadores em geral, independentemente de estarem ligados aos veículos da imprensa negra.

Pedro: A gente fez uma discussão exatamente sobre como a gente acha que a cobertura deveria ser feita, né? Uma cobertura pautada nos Direitos Humanos, uma cobertura de respeito às pessoas e de alguma maneira ter um compromisso de transformar esse estado de coisas de desigualdade que a gente vive no Brasil. É muito importante que esse jornalista tenha também uma possibilidade de uma maior circulação pela cidade, que esses jornalistas também não venham só da mesma classe social, do mesmo grupo étnico racial, do mesmo grupo de gênero. Que você tenha uma diversidade de pontos, uma diversidade de olhares, uma diversidade de pautas. Que no momento de fazer uma cobertura que tenham um respeito com as pessoas que foram vitimadas com determinados processos, seja desde uma pessoa que foi vítima de uma ação policial, seja desde uma pessoa que foi despachada por um processo de reintegração de posse, uma pessoa que é vítima de um processo de grilagem, ou mesmo de ameaça e violência em territórios. Porque a gente vê que muitas vezes o jornalismo, até por uma questão de querer ter essa coisa dinâmica, ele se limita ao ouvir a fonte oficial e ele não escuta as pessoas e quando escuta as pessoas é sempre quase uma notinha de rodapé. E a gente acha que num país que você não tem a pena de morte, mesmo que uma pessoa possa ter cometido determinado delito, é necessário muito atenção, é necessário muita escuta desses familiares quanto por exemplo se trata de uma vítima de violência policial e que a gente não pode fazer o nosso trabalho quase como um release da Segurança Pública, a gente precisa ouvir realmente, fazer uma checagem. Como diz a objetividade do nosso trabalho e a técnica do nosso trabalho, que a gente possa fazer uma checagem de todos os lados da história, não só dos dois, né, porque às geralmente a história tem mais do que dois lados.

Som de tintilar de sinos 🎶

Akemi: Ficou interessado ou interessada no Manual de Jornalismo Antirracista? Vai lá no site almapreta.com.br e deixa seu e-mail na caixinha que o documento vai ser enviado pra você. Está bem na página inicial do site.

Rafael: Outra iniciativa, também de agosto de 2023, é a Escola de Comunicação Antirracista do portal Notícia Preta, para ir além da divulgação de notícias e combater o racismo também por meio da educação. A Thaís explica que o público-alvo são os comunicadores que desejam conhecer ou aprofundar um trabalho antirracista. Entre os cursos oferecidos, destacamos o de Assessoria de Imprensa, Semiótica e Racismo; e o de História da Imprensa Negra no Brasil. A escola oferece cursos no formato online, mas também tem opções profissionalizantes presenciais, por meio de uma parceria com o Senac Rio.

Thaís: A gente não aprende a história da Imprensa negra na universidade. A UERJ, eu fiz até o quarto período antes de ir para Paris para um intercâmbio e fiquei 10 anos lá. Eu também não aprendi essa teoria da Imprensa Negra, nem aqui nem na Europa. Eu comecei a me interessar e fui correr atrás para poder para poder estudar e conhecer. Então eu acho que é fundamental pra gente que é comunicador entender aquela frase tão famosa, né? Que é nossos passos vêm de longe e nossos passos vêm de longe mesmo. Inclusive no jornalismo.

Sobe som 🎶

Rafael: Com a produção deste podcast, nós aqui da Empresa Brasil de Comunicação esperamos ter contribuído para um jornalismo universal antirracista e para a difusão da história da imprensa negra no Brasil.

Sobe som 🎶

Akemi: Chegamos ao último episódio do podcast Imprensa Negra no Brasil, produzido pela Radioagência Nacional. A produção, apuração e narração são de Rafael Cardoso, que também assina três reportagens especiais para a Agência Brasil, sobre os 190 anos da Imprensa Negra no Brasil.

Sobe som 🎶

Rafael: A adaptação, roteiro e montagem são de Akemi Nitahara. Ela também participou da locução das explicações

A coordenação de processos e edição são de Beatriz Arcoverde e Pollyane Marques

A locução do manifesto foi feita pelo Felipe Rangel

Gravação de Tony Godoy e equipe da EBC

Identidade sonora e sonoplastia de Jailton Sodré.

Liliane Farias e Raíssa Saraiva são responsáveis pela estratégia de publicação e distribuição nas redes sociais

A identidade visual e design foram feitos por Caroline Ramos

Implementação na Web:  Beatriz Arcoverde e Lincoln Araújo

Interpretação em Libras:  Claudia Jacob

Montagem da versão em vídeo: Felipe Leite e Fernando Miranda

Utilizamos as músicas Malunguinho, da Abayomi Afrobeat Orquestra; e Liberdade, da Orquestra Afro-brasileira.

Sobe som 🎶

Rafael: Muito obrigado a você que nos acompanhou até aqui. E se quiser conhecer um pouco mais dos veículos da Imprensa Negra no Brasil, basta nos procurar aqui na Radioagência Nacional, nas plataformas de áudio e também com interpretação de Libras no YouTube, para ouvir os demais episódios da série.

Rafael: Agora que você terminou de ouvir este podcast, que tal ouvir outras produções da Radioagência Nacional? Até a próxima!

Sobe som 🎶 


 

Ideia original, produção e narração Rafael Cardoso
Adaptação, roteiro, montagem e locução Akemi Nitahara
Edição e pós-produção: Pollyane Marques e Beatriz Arcoverde
Identidade sonora e sonoplastia: Jailton Sodré
Operação de áudio: Antony Godoy e equipe da EBC
Coordenação de processos: Pollyane Marques e Beatriz Arcoverde
Estratégia de publicação e distribuição nas redes sociais: Liliane Farias e Raíssa Saraiva
Identidade visual e design: Caroline Ramos
Implementação na Web: Beatriz Arcoverde e Lincoln Araújo
Interpretação em Libras: Claudia Jacob
Montagem da versão em vídeo: Felipe Leite e Fernando Miranda
   
   
   
   
   
   
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